O sol já se punha quando finalmente atravessara o portão da última
muralha. Treze ao todo. E treze dias de viagem de um a outro. Só então fora-lhe
possível contemplar a torre. Escura, enorme, perdia-se entre as nuvens. Sabia
agora que levaria pelo menos mais sete dias antes de poder tocar nos muros, mas
a torre já ocupava boa parte de seu campo de visão.
As treze muralhas, que guarneciam os treze portões, eram altas. Cada uma
deles tinha centenas de metros de altura. E elas aumentavam, cada uma maior que
a anterior. Mas aquilo, aquela torre, era incrível. Absurdo. Poderia passar a
eternidade escalando e, tinha certeza, jamais chegaria à metade.
Pôs-se a andar novamente. Jurara desvendar o segredo além das treze
muralhas. Não podia desistir agora. Tinha chegado longe demais, sofrido demais,
para pensar em retroceder.
A caminhada era difícil. Seus pés machucados, feridos, esfolados pelos
meses de caminhada desde os frondosos jardins que circundavam o primeiro portão.
O delicioso sol de um verão jovem sobre a relva mais verde e mais macia que já
existiu, o delicioso aroma das mais diversas flores, sempre a desabrochar, o
saboroso doce de todas as frutas do mundo, maduras e suculentas. A paisagem
piorava, tornava-se mais inóspita após cada muralha. Florestas escuras,
montanhas nuas, frias e pedregosas, desertos escaldantes, pântanos. Mas ali...
Ali era terrível.
O chão era feito de cinzas. Arbustos secos, retorcidos e calcinados surgiam
esparsos. O calor, abafado e sufocante, era subitamente substituído por um frio
maligno, que entorpecia a alma e feria o corpo. A sua volta, restos e carcaças
de outros que tentaram, em vão, a mesma jornada e foram derrotados pelo deserto
árido e cinzento do último portão. Um eterno crepúsculo manchava o céu com as cores
do fim. Um eterno crepúsculo da vida. Que só pressagiava morte e esquecimento.
Um vento forte açoitou, de repente, seu corpo nu. Frio, cortante, cruel.
Não. Não um vento. Pior e mais terrível. Um urro. Um rugido. Vindo direto da
torre. Um urro de dor, ira, agonia, ódio, desespero e selvageria. Um rugido que
rasgava o espírito e dilacerava a mente, transformando em frangalhos o pouco
que restava de sanidade em sua mente já desvairada. Sem proteção contra o
terrível vento-urro nem contra a chuva negra que começava a cair só lhe restava
proteger os olhos e seguir em frente.
Deixara tudo que possuía ao
cruzar o primeiro portão. Tivera de abandonar tudo, pois esta era uma viagem
que teria de realizar só, sem ajuda, com suas próprias forças. Não havia ajuda
após o primeiro portão. Nem mesmo guardiões. Os portões estavam sempre abertos
e desprotegidos. Pois a entrada era livre à todos. E ninguém nunca voltava.
Dias se passaram. Um caminho maior que o que reparava as muralhas. Muito
maior. Os rugidos do vento ainda lhe chicoteavam a carne e o espírito. Lágrimas
de sangue lhe manchavam o rosto. As frequentes
tempestades de cinzas feriam seus olhos, a incessante chuva negra queimava-lhe
a pele e o chão de cinzas rachava-lhe os pés.
Ao redor da torre conseguia ver
inúmeras formas negras que pareciam dançar no céu ao redor dos eternos muros.
Podia sentir uma forte vibração no chão. Presságio do próximo rugido. Mais
algumas horas e as asas dos dançarinos eram visíveis. Alguns com belas asas
brancas. Outros com terríveis asas negras. Todos envolvidos num louco balé
aéreo. Rápido, rodopiante, languido. Branco e preto rodopiando numa enorme
espiral ao redor da torre.
Aproximava-se cada vez mais da torre enquanto as belas asas pretas e
brancas continuavam sua dança. Dança? Não. Somente a distância confundiria
aquilo com dança. Não dançavam. Amavam-se apaixonadamente. Invadiam-se com
abandono. Seu voo delirante aumentava o leque de possibilidades. Branco e
preto, luz e sombra, começo e fim. Se misturando sem o menor pudor. Uma paixão
tão intensa, descontrolada e sem limites que, a cada ato consumado, os
participantes explodiam em belíssimas chamas azuis e púrpuras. Eram
completamente consumidos. Desapareciam. E o número de dançarinos nunca
diminuía.
Foi preciso atravessar a muralha viva de amantes para que continuasse
seu caminho. A espiral de asas, em sua revolução constante, às vezes tocava o
chão. Alguns pares aventuravam-se sobre as cinzas, outros encostavam-se às
paredes da torre e alguns outros, a maioria, preferia consumir-se em chamas
purpúreas em pleno ar. Muitos foram os convites para que se juntasse à eles.
Alguns tentaram bloquear-lhe o caminho, impedir-lhe o avanço, insistindo em sua
participação. Outros até mesmo tocaram-lhe o corpo com a mesma intensidade e
lascívia que dedicavam aos parceiros. Tudo para demover-lhe de seu objetivo.
Aquele foi, com certeza, o mais difícil dos desafios.
No curto espaço de algumas dezenas de passos milhares de vezes pensou em
desistir. Em entregar-se a toda aquela paixão, deixar-se levar naquele
infindável rio de prazer e consumir-se completamente numa bela explosão azul e
roxa. Mas a torre chamava. Instigava-lhe a avançar. Implorava para que a alcançasse.
E, assim, continuou seu caminho. Desvencilhando-se dos últimos pares de asas
que tentavam lhe seduzir, avançou em dirão às paredes negras à frente.
Em fim a torre. O espinho negro cravado fundo no coração cinza do mundo.
Mais um vento-urro atingiu seu coração. Tão forte, tão intenso, tão cheio de
dor, ódio, ira e solidão. Emanava da torre e parecia marcar sua chegada. O
rugido da torre reverberava no chão e parecia incentivar as asas ao redor.
Sim. Compreendeu. A Besta estava lá. Desde o início dos tempos. Aprisionada,
acorrentada e enterrada na torre eterna. Conhecia as estórias. Dizia-se que sua
fúria consumira tudo ao redor de sua cela. Sua agonia abalara toda a realidade,
tocara todos os mundos. Seu ódio e desespero envenenaram e consumiram todos os
corações que a conheceram. E ainda assim sua luz, para aqueles capazes de
enxergá-la, era hipnotizante e terrivelmente atraente. Reveladora.
Quantos já não foram enfeitiçados por essa mesma luz e atraídos à essa
mesma jornada através dos jardins do infinito até os desertos do fim, atraídos
pela promessa de um rápido vislumbre da chama eterna que existia no coração da
Besta, a mais primeva das luzes. Quantos já não foram derrotados no final
jornada por não serem capazes de ver o interior da torre.
A pedra escura da torre mostrava
marcas de inúmeros golpes. As eternidades que se repetiam ao seu redor, com
todos os seus candidatos ao vislumbre da chama, deixaram muitas marcas na
rocha, mas ela continuava lá. Eterna.
Seu corpo, já enfraquecido, ferido,
por todos os rigores da viagem, estava em farrapos. Sem mais forças, beirando a
exaustão e o colapso. A chuva negra e ácida, o vento frio e seco, cortante, o
solo cáustico e morto de pura cinza, todos esses, deixaram seu corpo e seu
espírito completamente derrotados.
Com a pouca força que lhe restara,
procurou um ponto mais desgastado da muralha. Seria sua única chance. Não teria
forças para tentar aquilo uma segunda vez. Se falhasse morreria ali, à poucos
centímetros daquilo que buscara com tanto afinco e por tanto tempo. Perderia
não só sua única chance como também a vida.
Seu espírito, dilacerado pelos
terrores que enfrentará entre os portões e ainda mais castigado pelos urros da
torre, que atacavam o coração e alma, se elevou concentrando-se em sua vontade.
Seu coração transbordou. Toda a esperança que havia lhe trazido tão longe,
todas as lembranças de seus amigos e parceiros que teve de deixar para trás, toda
a força de vontade que manteve suas pernas firmes e o corpo ereto por todo esse
caminho horrendo, a disciplina aprendida à tanto custo com cada um de seus mestres.
Tudo isso acumulou-se, carregando seu espírito e vontade com determinação,
coragem, raiva, alegria, ambição, ódio, amor... Tudo que seu coração humano
fora capaz de carregar tão longe. E, com tudo isso reunido atacou a torre. Deixou
que tudo extravasasse, explodindo, sobre a pedra fria e negra. Atacou o ponto
fraco na própria matéria da eternidade. O universo tremeu, o tecido da
realidade esgarçou e um urro arrasador, infinitamente pior que todos os outros
juntos, abalou a terra, esmigalhou carcaças e arbustos e arremessou os languidos
amantes voadores para longe.
Ao cair de joelhos no chão de cinzas, sem energia sequer para permanecer
em pé, passou-lhe pela mente a idéia de que tinha falhado. Por um interminável,
infinito, segundo seu coração afundou na derrota. Todo o seu ser, tudo o que
era, não fora suficiente para superar as eternas muralhas negras. Uma lágrima
escapou dos olhos sujos de cinza e sangue coagulado despencando em direção ao
cinza estéril do solo. Um segundo eterno.
Então uma luz vinda da muralha iluminou o céu, uma lâmina de aço ardente
rasgando o crepúsculo infindável do deserto cinzento. Uma luz forte, cauterizante.
Sim! Havia uma abertura na muralha! Ínfima, minúscula, mas suficiente para
permitir que a luz escapasse. E, portanto, suficiente para contemplar o
interior da torre. Arrastou-se com as últimas forças que lhe restavam e olhou através
da minúscula fissura para o interior da torre. E teve seu ser completamente
consumido pela visão.
E lá estava ela. A besta. Chifre, asas, presas e garras. Toda envolta em
chamas. Seus olhos eram a própria imagem da fúria destruidora, seus enormes
músculos, todos retesados e tensos, pareciam prestes a explodir pelo esforço.
Mais um urro louco e selvagem se fez ouvir, e junto dele uma golfada de magma
incandescente escapou da boca aberta da criatura. A criatura sangrava. Sangrava
lava e magma que escorriam pelo chão, transformando o interior da torre num
lago incandescente. A cratera de um vulcão ativo.
Seus esforços eram para libertar-se das inúmeras correntes que a
prendiam à torre. Ancoradas em vários pontos das paredes, aquelas correntes negras
vinham de todas as direções e afundavam na carne da criatura. Grandes arpões e
ganchos metálicos igualmente negros perfuravam o corpo a besta e, cada vez que
esta se movia, as correntes agarradas aos ganchos e arpões a faziam sangrar
ainda mais, aumentando sua agonia e alimentando sua fúria.
Agora era compreensível. Presa ali desde o inicio dos tempos, a luz
primal agora odiava tudo e todos pelo que deixaram lhe acontecer. Tantos milênios
de sofrimento e esquecimento. Ferida, humilhada, prisioneira e esquecida.
Aquela criatura consumiria tudo no dia em que escapasse. Puniria toda a criação
por tê-la esquecido. E estaria ela errada?
Voltou sua atenção para o coração da besta. Sim, ali estava o que vinha
procurando. Aquele corpo monstruoso e enorme não era capaz de esconder ou
diminuir o brilho inconfundível da verdade. Ali estava a primeira luz. O fogo
primordial. A primeira paixão e a primeira verdade. Deixou-se cegar por tamanha
luz. Mergulhou fundo ali, buscando aquilo que buscava a tanto tempo. Encontrou.
No centro da conflagração titânica que era o coração da besta-chama
primordial, divisou um corpo. Preso pelos braços e pernas àquelas chamas por
correntes e cravos semelhantes aos que prendiam sua contraparte gigantesca, um
corpo jovem, atraente. Crucificado como estava nas chamas, deixava seu sangue
escorrer lentamente pelos ferimentos abertos. A cabeça, caída sobre o
peito,evidenciava seus longos cabelos louros, tão brilhantes como o fogo a sua
volta, derramando-se em cachos até a cintura.
Percebendo sua aproximação, aquele preso nas chamas ergueu os olhos
fitando os seus direta e intensamente. Ele lhe sorriu. Um sorriso sedutor,
escarnecedor, atraente, misterioso, delicado e a agressivo. Um enigma em si mesmo.
Um sorriso que continha todos os outros. Ele sussurrou em seu ouvido. Fez uma
proposta. Daria-lhe o que tanto buscava ali se, em troca, lhe desse o que ele queria.
Sim. Sem hesitações ou contestações. Sim. Não teve dúvidas. Sim. Precisava
daquilo. Viajara tão longe, sacrificara tanto. E, agora que tinha nas mãos o
que viera buscar, não podia negar ou desistir. Então era sim. Daria o que quer
que ele desejasse se pudesse retornar com o que procurava.
Com um aceno afirmativo, o prisioneiro alcançou as chamas às suas costas
e tirou de lá uma pequenina chama, miniatura da enorme conflagração à qual se
prendia, e lhe entregou. Mas não uma simples chama. Uma pluma. Perfeitamente branca
e imaculada, envolta no bruxulear da chama primordial. Uma pluma vinda de suas
costas. Agora compreendia. Aquela pira gigantesca a qual ele estava preso era,
na verdade, suas asas. Asas que emanavam a luz da verdade. Asas que um dia
iluminaram toda a criação, e que agora estavam ali, aprisionadas nas trevas,
escondidos de tudo e de todos, exceto dos mais obstinados, se não obsecados, em
encontrá-la. Reconheceu-o.
Vendo o brilho da compreensão em seus olhos, O Príncipe da Luz lhe
sorriu, enquanto tocava lhe o peito, alcançando sua parte da barganha. Sentiu o
calor do toque dele em sua pele,
invadindo-lhe o ser e agarrando seu centro. Ele queria seu coração. Deixou no
lugar do órgão, a pluma. O calor da pluma tomou seu corpo, mente e espírito.
Agora estava em chamas do mesmo modo que a Besta a sua volta estava, do mesmo
modo que o Príncipe estava.
Ele agradeceu enquanto punha o coração, que acabara de arrancar de seu
peito, no centro das correntes que o prendiam. As correntes o envolveram e se
enterraram profundamente nele. E então o Príncipe da Luz estava livre. Com uma
risada límpida e harmônica, um perfeito coro da todas as vozes livre da
criação, o Príncipe abriu suas asas de luz e chama e levantou voo. Subiu e
subiu, em direção ao topo da torre. Subiu até que nem mesmo sua luz era mais
visível.
Mas o coração sangrava, queimava e murchava. Aquela liberdade era
temporária. Ele teria de voltar quando aquele coração já tivesse forças para conter
as correntes. Com a partida do príncipe a besta cauí ao chão. Um coração tão
pequenino não tinha força suficiente para sustentar tamanho poder. As chamas de
seu corpo imenso começaram a diminuir e se apagar. O magma que sangrava de seus
ferimentos esfriava, endurecia e se apagava. As trevas começaram a tomar o
interior da torre. Antes que tudo desaparecesse a última visão que teve foi da
pequena luz que vinha de seu coração. Brilhava sendo lentamente consumido no
centro da antes gigantesca chama primeva.
Sentiu a pequena pluma no lugar onde antes estivera seu coração. Ela
pulsava com o poder de milhares de corações. Fazia todo o seu ser arder e pulsar
em uníssono com o universo. Era aquilo que tanto buscara? Não. Foram as
palavras de despedida do Príncipe que fizeram tudo fazer sentido. Nunca
conseguiria se lembrar exatamente do que ele lhe dissera, mas fora o suficiente
para iluminar todo o seu ser, fazer com que compreendesse tudo. A pluma era
apenas uma doce lembrança, um pequeno mimo de agradecimento.
A escuridão avançava. Tomava todo o lugar e derramava-se em cada canto.
Envolvia-lhe todo o ser. Já não divisava sequer o próprio coração. Tendo
consigo tudo que queria, tudo o que tanto procurara, tudo que viera buscar,
deixou-se envolver e mergulhou fundo abraço pacificador trevas.
E então seus olhos se abriram para a luz. Acordou.