quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Fogo e cinzas


O sol já se punha quando finalmente atravessara o portão da última muralha. Treze ao todo. E treze dias de viagem de um a outro. Só então fora-lhe possível contemplar a torre. Escura, enorme, perdia-se entre as nuvens. Sabia agora que levaria pelo menos mais sete dias antes de poder tocar nos muros, mas a torre já ocupava boa parte de seu campo de visão.

As treze muralhas, que guarneciam os treze portões, eram altas. Cada uma deles tinha centenas de metros de altura. E elas aumentavam, cada uma maior que a anterior. Mas aquilo, aquela torre, era incrível. Absurdo. Poderia passar a eternidade escalando e, tinha certeza, jamais chegaria à metade.

Pôs-se a andar novamente. Jurara desvendar o segredo além das treze muralhas. Não podia desistir agora. Tinha chegado longe demais, sofrido demais, para pensar em retroceder.

A caminhada era difícil. Seus pés machucados, feridos, esfolados pelos meses de caminhada desde os frondosos jardins que circundavam o primeiro portão. O delicioso sol de um verão jovem sobre a relva mais verde e mais macia que já existiu, o delicioso aroma das mais diversas flores, sempre a desabrochar, o saboroso doce de todas as frutas do mundo, maduras e suculentas. A paisagem piorava, tornava-se mais inóspita após cada muralha. Florestas escuras, montanhas nuas, frias e pedregosas, desertos escaldantes, pântanos. Mas ali... Ali era terrível.

O chão era feito de cinzas. Arbustos secos, retorcidos e calcinados surgiam esparsos. O calor, abafado e sufocante, era subitamente substituído por um frio maligno, que entorpecia a alma e feria o corpo. A sua volta, restos e carcaças de outros que tentaram, em vão, a mesma jornada e foram derrotados pelo deserto árido e cinzento do último portão. Um eterno crepúsculo manchava o céu com as cores do fim. Um eterno crepúsculo da vida. Que só pressagiava morte e esquecimento.

Um vento forte açoitou, de repente, seu corpo nu. Frio, cortante, cruel. Não. Não um vento. Pior e mais terrível. Um urro. Um rugido. Vindo direto da torre. Um urro de dor, ira, agonia, ódio, desespero e selvageria. Um rugido que rasgava o espírito e dilacerava a mente, transformando em frangalhos o pouco que restava de sanidade em sua mente já desvairada. Sem proteção contra o terrível vento-urro nem contra a chuva negra que começava a cair só lhe restava proteger os olhos e seguir em frente.

 Deixara tudo que possuía ao cruzar o primeiro portão. Tivera de abandonar tudo, pois esta era uma viagem que teria de realizar só, sem ajuda, com suas próprias forças. Não havia ajuda após o primeiro portão. Nem mesmo guardiões. Os portões estavam sempre abertos e desprotegidos. Pois a entrada era livre à todos. E ninguém nunca voltava.

Dias se passaram. Um caminho maior que o que reparava as muralhas. Muito maior. Os rugidos do vento ainda lhe chicoteavam a carne e o espírito. Lágrimas de sangue lhe manchavam o rosto.  As frequentes tempestades de cinzas feriam seus olhos, a incessante chuva negra queimava-lhe a pele e o chão de cinzas rachava-lhe os pés.

  Ao redor da torre conseguia ver inúmeras formas negras que pareciam dançar no céu ao redor dos eternos muros. Podia sentir uma forte vibração no chão. Presságio do próximo rugido. Mais algumas horas e as asas dos dançarinos eram visíveis. Alguns com belas asas brancas. Outros com terríveis asas negras. Todos envolvidos num louco balé aéreo. Rápido, rodopiante, languido. Branco e preto rodopiando numa enorme espiral ao redor da torre.

Aproximava-se cada vez mais da torre enquanto as belas asas pretas e brancas continuavam sua dança. Dança? Não. Somente a distância confundiria aquilo com dança. Não dançavam. Amavam-se apaixonadamente. Invadiam-se com abandono. Seu voo delirante aumentava o leque de possibilidades. Branco e preto, luz e sombra, começo e fim. Se misturando sem o menor pudor. Uma paixão tão intensa, descontrolada e sem limites que, a cada ato consumado, os participantes explodiam em belíssimas chamas azuis e púrpuras. Eram completamente consumidos. Desapareciam. E o número de dançarinos nunca diminuía.

Foi preciso atravessar a muralha viva de amantes para que continuasse seu caminho. A espiral de asas, em sua revolução constante, às vezes tocava o chão. Alguns pares aventuravam-se sobre as cinzas, outros encostavam-se às paredes da torre e alguns outros, a maioria, preferia consumir-se em chamas purpúreas em pleno ar. Muitos foram os convites para que se juntasse à eles. Alguns tentaram bloquear-lhe o caminho, impedir-lhe o avanço, insistindo em sua participação. Outros até mesmo tocaram-lhe o corpo com a mesma intensidade e lascívia que dedicavam aos parceiros. Tudo para demover-lhe de seu objetivo. Aquele foi, com certeza, o mais difícil dos desafios.

No curto espaço de algumas dezenas de passos milhares de vezes pensou em desistir. Em entregar-se a toda aquela paixão, deixar-se levar naquele infindável rio de prazer e consumir-se completamente numa bela explosão azul e roxa. Mas a torre chamava. Instigava-lhe a avançar. Implorava para que a alcançasse. E, assim, continuou seu caminho. Desvencilhando-se dos últimos pares de asas que tentavam lhe seduzir, avançou em dirão às paredes negras à frente.

Em fim a torre. O espinho negro cravado fundo no coração cinza do mundo. Mais um vento-urro atingiu seu coração. Tão forte, tão intenso, tão cheio de dor, ódio, ira e solidão. Emanava da torre e parecia marcar sua chegada. O rugido da torre reverberava no chão e parecia incentivar as asas ao redor.

Sim. Compreendeu. A Besta estava lá. Desde o início dos tempos. Aprisionada, acorrentada e enterrada na torre eterna. Conhecia as estórias. Dizia-se que sua fúria consumira tudo ao redor de sua cela. Sua agonia abalara toda a realidade, tocara todos os mundos. Seu ódio e desespero envenenaram e consumiram todos os corações que a conheceram. E ainda assim sua luz, para aqueles capazes de enxergá-la, era hipnotizante e terrivelmente atraente. Reveladora.

Quantos já não foram enfeitiçados por essa mesma luz e atraídos à essa mesma jornada através dos jardins do infinito até os desertos do fim, atraídos pela promessa de um rápido vislumbre da chama eterna que existia no coração da Besta, a mais primeva das luzes. Quantos já não foram derrotados no final jornada por não serem capazes de ver o interior da torre.

 A pedra escura da torre mostrava marcas de inúmeros golpes. As eternidades que se repetiam ao seu redor, com todos os seus candidatos ao vislumbre da chama, deixaram muitas marcas na rocha, mas ela continuava lá. Eterna.

 Seu corpo, já enfraquecido, ferido, por todos os rigores da viagem, estava em farrapos. Sem mais forças, beirando a exaustão e o colapso. A chuva negra e ácida, o vento frio e seco, cortante, o solo cáustico e morto de pura cinza, todos esses, deixaram seu corpo e seu espírito completamente derrotados.

 Com a pouca força que lhe restara, procurou um ponto mais desgastado da muralha. Seria sua única chance. Não teria forças para tentar aquilo uma segunda vez. Se falhasse morreria ali, à poucos centímetros daquilo que buscara com tanto afinco e por tanto tempo. Perderia não só sua única chance como também a vida.

 Seu espírito, dilacerado pelos terrores que enfrentará entre os portões e ainda mais castigado pelos urros da torre, que atacavam o coração e alma, se elevou concentrando-se em sua vontade. Seu coração transbordou. Toda a esperança que havia lhe trazido tão longe, todas as lembranças de seus amigos e parceiros que teve de deixar para trás, toda a força de vontade que manteve suas pernas firmes e o corpo ereto por todo esse caminho horrendo, a disciplina aprendida à tanto custo com cada um de seus mestres. Tudo isso acumulou-se, carregando seu espírito e vontade com determinação, coragem, raiva, alegria, ambição, ódio, amor... Tudo que seu coração humano fora capaz de carregar tão longe. E, com tudo isso reunido atacou a torre. Deixou que tudo extravasasse, explodindo, sobre a pedra fria e negra. Atacou o ponto fraco na própria matéria da eternidade. O universo tremeu, o tecido da realidade esgarçou e um urro arrasador, infinitamente pior que todos os outros juntos, abalou a terra, esmigalhou carcaças e arbustos e arremessou os languidos amantes voadores para longe.

Ao cair de joelhos no chão de cinzas, sem energia sequer para permanecer em pé, passou-lhe pela mente a idéia de que tinha falhado. Por um interminável, infinito, segundo seu coração afundou na derrota. Todo o seu ser, tudo o que era, não fora suficiente para superar as eternas muralhas negras. Uma lágrima escapou dos olhos sujos de cinza e sangue coagulado despencando em direção ao cinza estéril do solo. Um segundo eterno.

Então uma luz vinda da muralha iluminou o céu, uma lâmina de aço ardente rasgando o crepúsculo infindável do deserto cinzento. Uma luz forte, cauterizante. Sim! Havia uma abertura na muralha! Ínfima, minúscula, mas suficiente para permitir que a luz escapasse. E, portanto, suficiente para contemplar o interior da torre. Arrastou-se com as últimas forças que lhe restavam e olhou através da minúscula fissura para o interior da torre. E teve seu ser completamente consumido pela visão.

E lá estava ela. A besta. Chifre, asas, presas e garras. Toda envolta em chamas. Seus olhos eram a própria imagem da fúria destruidora, seus enormes músculos, todos retesados e tensos, pareciam prestes a explodir pelo esforço. Mais um urro louco e selvagem se fez ouvir, e junto dele uma golfada de magma incandescente escapou da boca aberta da criatura. A criatura sangrava. Sangrava lava e magma que escorriam pelo chão, transformando o interior da torre num lago incandescente. A cratera de um vulcão ativo.

Seus esforços eram para libertar-se das inúmeras correntes que a prendiam à torre. Ancoradas em vários pontos das paredes, aquelas correntes negras vinham de todas as direções e afundavam na carne da criatura. Grandes arpões e ganchos metálicos igualmente negros perfuravam o corpo a besta e, cada vez que esta se movia, as correntes agarradas aos ganchos e arpões a faziam sangrar ainda mais, aumentando sua agonia e alimentando sua fúria.

Agora era compreensível. Presa ali desde o inicio dos tempos, a luz primal agora odiava tudo e todos pelo que deixaram lhe acontecer. Tantos milênios de sofrimento e esquecimento. Ferida, humilhada, prisioneira e esquecida. Aquela criatura consumiria tudo no dia em que escapasse. Puniria toda a criação por tê-la esquecido. E estaria ela errada?

Voltou sua atenção para o coração da besta. Sim, ali estava o que vinha procurando. Aquele corpo monstruoso e enorme não era capaz de esconder ou diminuir o brilho inconfundível da verdade. Ali estava a primeira luz. O fogo primordial. A primeira paixão e a primeira verdade. Deixou-se cegar por tamanha luz. Mergulhou fundo ali, buscando aquilo que buscava a tanto tempo. Encontrou.

No centro da conflagração titânica que era o coração da besta-chama primordial, divisou um corpo. Preso pelos braços e pernas àquelas chamas por correntes e cravos semelhantes aos que prendiam sua contraparte gigantesca, um corpo jovem, atraente. Crucificado como estava nas chamas, deixava seu sangue escorrer lentamente pelos ferimentos abertos. A cabeça, caída sobre o peito,evidenciava seus longos cabelos louros, tão brilhantes como o fogo a sua volta, derramando-se em cachos até a cintura.

Percebendo sua aproximação, aquele preso nas chamas ergueu os olhos fitando os seus direta e intensamente. Ele lhe sorriu. Um sorriso sedutor, escarnecedor, atraente, misterioso, delicado e a agressivo. Um enigma em si mesmo. Um sorriso que continha todos os outros. Ele sussurrou em seu ouvido. Fez uma proposta. Daria-lhe o que tanto buscava ali se, em troca, lhe desse o que ele queria.

Sim. Sem hesitações ou contestações. Sim. Não teve dúvidas. Sim. Precisava daquilo. Viajara tão longe, sacrificara tanto. E, agora que tinha nas mãos o que viera buscar, não podia negar ou desistir. Então era sim. Daria o que quer que ele desejasse se pudesse retornar com o que procurava.

Com um aceno afirmativo, o prisioneiro alcançou as chamas às suas costas e tirou de lá uma pequenina chama, miniatura da enorme conflagração à qual se prendia, e lhe entregou. Mas não uma simples chama. Uma pluma. Perfeitamente branca e imaculada, envolta no bruxulear da chama primordial. Uma pluma vinda de suas costas. Agora compreendia. Aquela pira gigantesca a qual ele estava preso era, na verdade, suas asas. Asas que emanavam a luz da verdade. Asas que um dia iluminaram toda a criação, e que agora estavam ali, aprisionadas nas trevas, escondidos de tudo e de todos, exceto dos mais obstinados, se não obsecados, em encontrá-la. Reconheceu-o.

Vendo o brilho da compreensão em seus olhos, O Príncipe da Luz lhe sorriu, enquanto tocava lhe o peito, alcançando sua parte da barganha. Sentiu o calor do toque dele em  sua pele, invadindo-lhe o ser e agarrando seu centro. Ele queria seu coração. Deixou no lugar do órgão, a pluma. O calor da pluma tomou seu corpo, mente e espírito. Agora estava em chamas do mesmo modo que a Besta a sua volta estava, do mesmo modo que o Príncipe estava.

Ele agradeceu enquanto punha o coração, que acabara de arrancar de seu peito, no centro das correntes que o prendiam. As correntes o envolveram e se enterraram profundamente nele. E então o Príncipe da Luz estava livre. Com uma risada límpida e harmônica, um perfeito coro da todas as vozes livre da criação, o Príncipe abriu suas asas de luz e chama e levantou voo. Subiu e subiu, em direção ao topo da torre. Subiu até que nem mesmo sua luz era mais visível.

Mas o coração sangrava, queimava e murchava. Aquela liberdade era temporária. Ele teria de voltar quando aquele coração já tivesse forças para conter as correntes. Com a partida do príncipe a besta cauí ao chão. Um coração tão pequenino não tinha força suficiente para sustentar tamanho poder. As chamas de seu corpo imenso começaram a diminuir e se apagar. O magma que sangrava de seus ferimentos esfriava, endurecia e se apagava. As trevas começaram a tomar o interior da torre. Antes que tudo desaparecesse a última visão que teve foi da pequena luz que vinha de seu coração. Brilhava sendo lentamente consumido no centro da antes gigantesca chama primeva.

Sentiu a pequena pluma no lugar onde antes estivera seu coração. Ela pulsava com o poder de milhares de corações. Fazia todo o seu ser arder e pulsar em uníssono com o universo. Era aquilo que tanto buscara? Não. Foram as palavras de despedida do Príncipe que fizeram tudo fazer sentido. Nunca conseguiria se lembrar exatamente do que ele lhe dissera, mas fora o suficiente para iluminar todo o seu ser, fazer com que compreendesse tudo. A pluma era apenas uma doce lembrança, um pequeno mimo de agradecimento.

A escuridão avançava. Tomava todo o lugar e derramava-se em cada canto. Envolvia-lhe todo o ser. Já não divisava sequer o próprio coração. Tendo consigo tudo que queria, tudo o que tanto procurara, tudo que viera buscar, deixou-se envolver e mergulhou fundo abraço pacificador trevas.

E então seus olhos se abriram para a luz. Acordou.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Chegando ao Banquete


Degrau a degrau eles avançavam. Subiam passo a passo. Desde que o portão fechara à suas costas aquela escadaria os desafiara. Começaram subindo pelo fosso oco que era o salão de entrada da torre. Nenhuma decoração, Apenas a pedra branca e os arabescos prateados.

O guerreiro mal podia ver diferença entre ali e o exterior. A escada, do mesmo material das paredes e com os mesmos detalhes em relevo, seguia subindo em espiral em torno do que parecia o pilar central da torre. À distancia nem sequer conseguia diferenciar os degraus da pedra que constituía o pilar e as paredes circundantes. Podia jurar que os degraus surgiam ao se aproximar deles e desapareciam logo após sua passagem. O branco e o prateado que os rodeava parecia infinito tanto para cima quanto para baixo. Rapidamente perdeu a noção do quanto tinham avançado.

Subiam e subiam. Caminharam por uma vida inteira antes que ele percebesse a nevoa. Não estava cansado. Caminhara, correra e lutara sua vida inteira sobre a terra, sobre a lama, sobre os corpos de seus inimigos. Lutara por mais tempo e com mais inimigos do que qualquer exercito. Não seria derrotado por uma simples escada. Um passo depois do outro, cada degrau um novo inimigo derrotado. Ele continuou subindo.

Mas a nevoa começou a adensar, borrando-lhe a vista, dificultando seus passos. Com uma mão encostada na parede do gigantesco pilar central, seguia a silhueta de seu anfitrião, borrada e difusa em meio á bruma. A nevoa começou a dificultar-lhe a respiração e a deixar a pedra branca úmida e escorregadia. Já não via mais o branco do pilar ou dos degraus. Tudo era cinza nebuloso. Nem mesmo via mais a silhueta do que ia a sua frente. Mas o caminho era um só: Em frente e acima. Sabia para onde ir. Não pararia por nada. Nunca tinham feito aquele homem desviar de seu caminho nem tinham impedido seu avanço. Recuar era a morte e, pior, a desonra, a ignomínia, o esquecimento. Ele continuaria, avançaria sempre.

Começou a notar sombras tênues, distantes, movendo-se em meio à densa neblina que o redoava. Cinzas mais profundos destacados contra o leve cinza do resto do ambiente. Moviam-se rápido, mais distantes do que arriscava distanciar-se do pilar. Não tinha noção de onde terminariam os degraus. Não podia mais ver o abismo que sabia encontrar-se ao fim daqueles degraus. Nenhum corrimão, sacada ou parede o impediria de cair. Lembrava-se das palavras daquele que lhe abrira os portões, os avisos que dera e as ameaças que fizera.

                - O que procuras encontra-se no fim desta escadaria, no mais alto cômodo desta torre.- Dissera-lhe o anfitrião. Sua voz era solene, poderosa, porem amável. Dava seu aviso como se realmente se importasse - Mas ouve bem, mortal. Ouve com atenção. Este é um caminho sem volta. Uma vez que dê o primeiro passo nesta jornada, jamais poderá voltar.- A voz parecia ecoar por todo o mundo antes de sair de dentro do pesado capuz que lhe escondia o rosto.

                -Nunca recuei frente a nenhum desafio, nunca fui barrado por inimigo algum. Nada, deus, demônio ou espírito, jamais impediu meu avanço. Não vivi tanto tempo para ser derrotado agora.

                -Muito bem. Se assim desejas. Entregue sua espada. Eu a devolverei quando chegar ao seu destino. E se lá não chegar, ela não lhe será útil.

                -Sabe que sou tão mortífero com ou sem a espada, não é? Esta espada é apenas uma ferramenta. Minha arte descansa em meus braços, em meu corpo e em meu espírito.

                -É bom que tenha esta compreensão. Tornará tua viagem menos difícil. Agora vem. Prossigamos.

E os dois começaram a subida tanto tempo antes, mais de uma vida atrás.

Um passo. Mais outro. A cada degrau que subia a neblina se adensava, escurecia. Também aumentavam as sombras que se moviam, ocultas. Às vezes pareciam próximas o suficiente para que pudesse tocá-las, outras vezes estavam tão distantes que mal podia distingui-las do resto da névoa. E o número delas crescia, assim como a escuridão. Em pouco tempo já conseguia ver que aquelas sobras, agora tão numerosas e se movendo tão rápidas. E tinham olhos. Pequenos pontos brilhantes, um brilho intenso e longínquo, de várias cores diferentes.

Assim como seu guia a muito sumira na bruma, a própria bruma desaparecera frente ao negrume que se seguiu. Tantas eram as sombras à sua volta que agora tudo era negro. Uma escuridão profunda e inexorável, interrompida apenas pelo voo errático daqueles distantes pontos brilhantes, multicoloridos. Podia sentir a parede do pilar contra seus dedos e os degraus, sólidos, sob seus pés. Mas estavam a muito perdidos, ocultos, invisíveis.

Caminhava cego pela escuridão, tenso, atento. Cada sentido seu em alerta total. Seus instintos combativos, sua experiência em incontáveis campos de batalha, lhe dizia o tempo todo que poderia ser atacado a qualquer momento. Mas não ouvia mais nada, não enxergava nada. Nenhum cheiro, nem mesmo aroma característico de névoa, de vapor. Nada sentia a não ser o frio toque da pedra contra seus dedos e seus pés. Só via aquelas distantes estrelas coloridas voando à distancia.

Foi quando percebeu uma leve iluminação à frente. Era baça, mas trazia algum conforto frente ao vazio que o rodeava. Soube, então que estava perto de seu destino. Aquela viagem logo teria fim. Seu objetivo estava quase à sua frente. Acelerou o passo. A luz foi aumentando, trazendo com ela um calor reconfortante. Seu coração acelerou. A proximidade com o fim daquele caminho insólito dava-o forças. O clarão cresceu cada vez mais, seus olhos doíam com a luz, e o calor agora era abrasador. Podia ouvir o crepitar de um grande fogo. As estrelas dançantes ao longe já não dançavam. Observavam, estáticas, seu avanço em direção à enorme fogueira que se insinuava à sua frente. Já não caminhava. Corria em direção à luz. Sua pele ardia, os olhos, doloridos, mantinham-se abertos apenas pela poderosa força de vontade de seu dono. O cheiro de fogo sem fumaça, de tempestade e algo mais. Algo que demorou à identificar.
Era o pesado cheiro de tempo. O cheiro de tempo demais. O aroma que só os muito velhos conseguiam apenas imaginar, O cheiro de como seria depois que envelhecessem mais algumas vidas inteiras. E tudo aquilo vinha em sua direção cada vez mais rápido, cada vez mais intenso. Uma velha tempestade de fogo que crescia a cada passo. Até explodir á sua frente ocupando todos os seus sentidos.

Quando conseguiu abrir os olhos novamente, a névoa tinha desaparecido. As estrelas, antes dançantes, estavam próximas e não mais voavam, se arrastavam pelo firmamento. Astros giravam e se moviam lentamente no espaço infinito ao seu redor. O pilar e a escada continuavam em direção ao infinito negro, mas agora via planetas, estrelas e galáxias em seu eterno balé cósmico. O universo girava em torno do caminho que seguia. Olhou para baixo. A escadaria surgia de uma esfera de fogo azul, com tentáculos de labaredas arroxeadas agitando-se em volta do caminho que seguira até ali. Uma enorme estrela azul purpúrea. Via dançarinos naquelas labaredas gigantes. Seus cabelos deixavam o rastro do fogo para trás. Dançarinos e dragões. As caudas dos dragões incendiavam o vazio. Nas enormes erupções que escapavam da estrela os dançarinos, e seus cabelos em chamas, e os dragões, com suas caudas inflamadas, iluminavam tudo a seu redor e desintegravam tudo o que tocavam. Alguns planetas próximos demais desapareceram enquanto o guerreiro observava a bela revolução das chamas estelares.

Por um segundo ele não conseguiu respirar. A grandiosidade de tudo que via o arrebatava. Enfrentara os mais altos deuses e os mais terríveis demônios e seus exércitos, mas nada fora tão grandioso, incrível e majestoso quanto o que via ali. Toda a criação dançando e girando à sua frente.

Teria passado mais alguns séculos contemplando tudo aquilo, mas uma presença a seu lado o fez acordar de seu devaneio. Ali estava o grande manto negro, de capuz pesado e cheio de detalhes dourados. Seu guia. Estava simplesmente parado a seu lado, como se esperasse algo. Ele nada disse, nem sequer se moveu. Mas o guerreiro entendeu. Tinha esquecido seu objetivo. Por um segundo tinha deixado para trás sua busca, embevecido nas belezas do cosmo. Deveria ficar irritado, deveria se repreender. E o teria feito se fosse mais moço. Mas tudo que pode fazer foi dar um leve sorriso meio arrependido:

                -Perdoe a mente enfraquecida de um velho. Os anos nos fazem divagar cada vez com mais frequência e por mais tempo. Mas já estou pronto para prosseguir.

Com um rápido aceno de cabeça o guia deu-lhe as costas e pôs-se a caminho. Eles voltaram a subir.

Galáxias morreram e galáxias nasceram. Estrelas engoliram a si próprias, ruminaram-se por várias eras e regurgitaram novos universos. A vida surgiu e desapareceu várias vezes em muitos mundos. Grandes naus singraram os vazios do cosmos e várias raças guerrearam entre os corpos celestes em eterna revolução. E eles continuavam subindo. Subindo eternamente.

Subiram tanto que todos os corpos celestes se distanciaram. Sumiram na distancia muito abaixo deles. E só restou o pilar, a escada, os dois peregrinos e a escuridão do vácuo.

Então uma poderosa luz rasgou o negrume do universo e sumiu na distancia acima deles. Então veio outra. Igualmente branca e resplandecente, coruscando numa velocidade imensa na escuridão. E então mais outra dessas pequenas estrelas cadentes. E outra. E outras. Várias delas. Vindas do nada abaixo e desaparecendo muito, muito acima. Então ele notou. Havia um pequeno ponto luminoso lá no alto. Um ponto onde aquelas estrelas cadentes pareciam convergir.

Eles continuaram subindo. E o ponto luminoso aumentou. Outra estrela. Mas essa era maior, mais densa, mais quente que aquela da qual tinha emergido tanto tempo antes. E era amarela e vermelha, como as chamas de uma fogueira. As estrelas cadentes se chocavam com as enormes erupções que fugiam da estrela vermelha e explodiam numa chuva de luz prateada e laranja. Aqui os dançarinos eram menos graciosos. Seus movimentos mais duros e pesados, mas ainda assim belos. Golpeavam cada estrela candente com bastões de chamas, despedaçando-as. Os dragões, antes majestosos, aqui eram pura fúria. Abocanhavam cada estrela e as destruíam entre seus dentes. Ali se travava uma verdadeira guerra.

Então veio uma estrela diferente. Esta tinha o tom daquela primeira estrela que haviam visto, azul purpúrea. Esta vinha mais rápida e era maior que as outras. Dragões e dançarinos investiram contra ela, mas foram destruídos em sua passagem. A estrela cadente continuou sua jornada até chocar-se com a grande estrela. Checaram-se. E a estrela cadente adentrou a grande vermelha. E suas cores se misturaram. Os dançarinos e os dragões começaram a morrer e a grande estrela, agora vermelho sanguíneo, começou a pulsar.

Enquanto continuava a subir acima de toda aquela revolução, o velho guerreiro viu a estrela de sangue tornar-se duas. Depois tornar-se quatro. E então muitas. E antes que ela sumisse na distancia abaixo deles, jurou poder ver um pequenino rosto em meio às chamas de incontáveis estrelas.

Foi então que um céu formou-se acima deles. Parecia granito, com seus pequenos cristais brilhantes de diferentes cores. Caminharam bastante em direção ao céu granito acima deles. Séculos de caminhada, sempre ascendente. Incontáveis degraus. Então um estrondo, um trovão gigantesco. Seguido por outro ainda maior, algo quebrando-se em várias partes. Uma rachadura no céu, distante deles. E alguém caindo através da rachadura. Uma mulher. Nua, ela caia de costas, as mãos e os pés soltos, flácidos, estendidos ao sabor da queda. E ela chorava. Chorava silenciosamente. Chorava lagrimas de sangue. E o mesmo sangue manchava suas mãos e seu peito. Ela olhou para eles. Olhou para ele. Mas seu olhar nada tinha de pedir ajuda. Apenas resignação. A triste aceitação dos que decidem pagar o preço final. E continuou caindo.

                -Vamos deixa-la cair? Não podemos ajudá-la?- Perguntou o guerreiro a seu guia.

                -Não. O caminho dela não é este. Cada um deve seguir seu próprio caminho, seja este doloroso como for. Nossos caminhos são nossos e apenas nossos. E o dela está apenas começando.

                -E se decidisse tentar ajudá-la?- Questionou o velho combatente, com o tom ríspido dos que passaram a vida desafiando o destino e indo contra as normas.

                -Cairia.-Foi a resposta que lhe veio de dentro do manto inescrutável.

                -E então?

                -Como foste avisado ao começar a trilhar este caminho, jamais chegaria onde deseja e esta estrada estaria perdida para sempre.

Um último olhar em direção a pobre mulher que despencava e ele pôs-se à caminho novamente. Continuaram subindo. Cada vez mais próximos do céu duro e rachado acima. E eles subiam ainda mais. E várias eras passaram enquanto subiam. E aquilo que era granito já não era mais. Enormes rostos de varias cores formavam aquele firmamento tão concreto. Cada pequeno cristal do granito era uma face perfeitamente esculpida, cada expressão diferente. Dor, prazer, tristeza, êxtase, agonia, felicidade, desespero, alegria. E uma delas, distante, estava arruinada, destruída. Por detrás dela outros rostos eram visíveis. Menores, mais numerosos e igualmente perfeitos. E no escuro de seus olhos, rostos ainda menores. E outros rostos ainda menores nos olhos destes.

A escada seguia até tocar um destes rostos. A boca deste estava aberta. E nesta bocarra, três portas fitavam o guerreiro.

Uma delas estava escancarada. E lá ele via imagens de sua vida. Via suas batalhas, suas vitórias, suas alegrias, suas glórias. E todo o inverso delas. Via também seu caminho até aquele lugar. Viu a pobre garota caindo.

A segunda estava levemente entreaberta. Tão pequena era a fresta da abertura que só podia ver a luz que vinha de trás da porta e imaginar o que havia ali.

A terceira estava fechada.

                -Uma destas portas está trancada.-Disse o guia, com sua voz profunda e calma.- Nem eu nem você temos a chave nem temos permissão para atravessá-la. É teu dever escolher qual delas cruzará. Apenas uma te levará ao destino que desejas.

                -É este o final da jornada?- perguntou o guerreiro.

                -Não.- respondeu secamente a voz dentro do manto.- Este é apenas o final desta escada. E o começo do que quer que esteja por vir. Mas lembre-se: uma vez feita a escolha, não poderás voltar atrás.

O guerreiro fitou as portas. Muitos deuses surgiram e desapareceram enquanto ele divagava. Seria ele capaz de derrubar a porta trancada? E a porta já aberta? Teria ele algum interesse nela? Havia também uma porta entreaberta. O que ela guardaria? E se tentasse a porta trancada e falhasse? Teria de voltar por onde veio? Voltar ao mundo que deixara já nem sabia quanto tempo atrás?

Respirando fundo, o guerreiro juntou todo seu espírito, sua coragem e sua força de vontade. Tinha de tomar ali uma decisão que poderia mudar completamente o seu destino. Uma decisão que poderia destruí-lo. Soltou o ar lentamente, relaxando os músculos como que se preparando para um combate. E, com um movimento súbito, fluido e firme, atravessou a porta entreaberta.

Deu por si num salão de banquete. A mesa estava posta. Quatro cadeiras em torno da grande e suntuosa mesa. As paredes eram da mesma pedra branca com detalhes prateados. Um gigantesco candelabro ocupava todo o teto do grande aposento, varias dezenas de metros de diâmetro. Numa das grandes cadeiras o redor da mesa, um garoto de seus dezesseis anos, pele bronzeada, olhos azuis luminosos e completamente nu, sorria sarcasticamente para ele.

Atordoado, o guerreiro voltou-se para a porta. Lá estava ele. Aquele que procurara por tanto tempo. O Oráculo. De formas esguias e andróginas, pele muito branca, cabelos negros, vestes escuras, brincos, pulseiras e colares resplandecentes como estrelas. Segurava um manto pesado e, com um sorriso, fechou a porta e disse:

                -Bem vindo ao meu salão. Sinta-se confortável. O jantar será servido em breve. Nem todos os convidados chegaram.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Amor Próprio


*Cuidado. Temática forte!*

A porta do quarto abriu-se de repente, dando-lhe passagem e sendo fechada violentamente logo em seguida. Chorava. As roupas e o cabelo em desalinho, a maquiagem borrada, o lábio ferido e o olho roxo, tudo, em harmonia com a decoração daquele lugar. Suas roupas espalhadas pelo chão, a cama desarrumada, pelúcias e badulaques espalhados em todos os lados, pôsteres nas paredes e livros empilhados em cada canto. Suas lágrimas rolavam livres e soltas por seu belo rosto, agora desfigurado pela amargura e a tristeza, enquanto ela se sentava na cama. O corpo arqueado subia descia a cada soluçar. O rosto mal escondido entre as mãos mostrava tudo que o choro impedia-a de dizer. O rancor, o pesar, a dor, a humilhação, o desespero, tudo que uma alma podia carregar sozinha. E mais um pouco.

------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Ela o amara. Ela deu a ele tudo o que tinha, tudo o que era. Entregara-se completamente. Mas nunca era o bastante. Ele sempre queria mais, exigia mais. Ela acabou se distanciando dos outros. Já não tinha tempo para amigos nem família. Nem mesmo o trabalho ou os estudos. Ele ocupava todo o seu tempo, todo o seu  espaço. Ele era todo o seu mundo.

E em troca de disso, em troca de seu corpo, de sua mente e de coração, ela a usava como bem entendia. Usava-a e abusava dela de todas as maneiras que conhecia. E de tantas outras maneiras que pesquisava especialmente para ela. Ele a instigava, provocava e humilhava. Não havia limites para seu domínio sobre ela. E ela agradecia. Ela delirava. Maravilhava-se com tudo aquilo. A cada novidade que ele lhe trazia ela descobria novos limites para seu corpo e sua mente. Sempre que achava que tinha experimentado de tudo, que nada mais restava, que aquela jornada maravilhosa e terrível finalmente terminara, ele surgia com algo novo. Algo muito pior todo o resto. Mais degradante, mais doloroso, mais depravado, mais imoral e muito mais ilegal. E ela novamente sucumbia àquela vontade tão superior à sua. Nada nela era capaz de resistir a ele. Ele era a sua religião, o seu vício, seu tudo.

E então, tão de repente quanto tinha entrado em sua vida, ele decidira partir. Tinha perdido o interesse nela. Disse que tinha encontrado alguém melhor. Que ela já não lhe era suficiente. Estava gasta, usada, ultrapassada demais para os desejos dele. O único homem da vida dela decidira que ela deixara de ser boa o bastante para ele. Ela, que lhe dedicara tudo que tinha e era à ele.

Não pudera deixar aquilo acontecer sem lutar. Implorara à ele que a deixasse segui-lo. Que faria qualquer coisa que lhe pedisse. Ele retrucou que não era mais o bastante. Que ela já não era mais capaz de dar-lhe o que ele tanto desejava. Ela estava quebrada, e ele não se interessava por brinquedos imperfeitos.
Ele a deixou desolada, perdida, desesperada, enrolada sobre si mesma soluçando no canto da parede, e foi embora, rindo alto. Todo o mundo que ela um dia conhecera, saía de sua vida com uma gargalhada e batendo a porta com estrondo.

Ali, enrolada e encolhida no canto mais escuro da casa, ela ficou enquanto algo dentro de si era rasgado, quebrado, despedaçado. Foi ali que seus pais à encontraram tarde da noite, ao voltarem de mais um dia cinzento, mundano e banal de trabalho. Ao acenderem as luzes, encontraram apenas cacos e sombras do que um dia fora sua filha. Largada no chão, ela tentava ainda, em vão, juntar seus pequenos cacos e juntá-los com as pequenas migalhas que ele deixara dentro dela. Sim, porque parte dele ainda estava dentro dela. E estaria ainda com ela por bastante tempo. Consumia-a, devorava-a, alimentava-se dela e de tudo que restava dela. E crescia.

Seus pais tentaram ajudá-la a se levantar, mas ela não tinha mais forças. Deixava-se carregar, meio morta e completamente derrotada. Levaram-na para a grande cama do quarto de casal. O pai, tão acostumado às moléstias do corpo, tentou examiná-la, tentou descobrir que mal a consumia e com quais remédios tratá-la. A mãe, guerreira e defensora da justiça, interrogava-a e jurava vingança aos que à feriram. Foi então que ela compreendera. Axava que tinha sacrificado tudo o que tinha por ele, que lhe dera tudo o que podia. Mas não era verdade. Ainda havia sacrifícios à fazer. E sua mãe carregava à cintura a ferramenta que ela precisava.

Eles resistiram. Lutaram. Tentaram fugir. Gritaram, imploraram por suas vidas. Mas ela sabia que era assim que devia ser. Precisava dele de volta. Precisava ser dele de novo. E nada mais lhe restara para dar, nenhum sacrifício que já não tivesse feito. Apenas aquele último e derradeiro. Enquanto caminhava, suja e ferida, para a cozinha sentiu-se mais alegre e aliviada. Tivera forças suficiente para fazer o que tinha que fazer. Compreendera o que seu senhor queria e agora estava pronta à entregar-lhe. Apanhou a melhor faca da mãe e voltou para junto dos pais. E começou o lento processo de separar o belo rubi vital da sujeira do barro primordial. Duas lindas joias carmesins seriam suficientes para mostrar à ele o quanto desejava voltar a lhe pertencer. Aquele presente não poderia ser negado. Ele tinha de aceitá-la de volta.

Não esperou o raiar do dia. Pôs as oferendas em sua velha mochila, junto com aquelas ferramentas agora tão queridas, e saiu de casa com sorriso no rosto e o passo rápido e largo. Queria encontrá-lo o mais rápido possível e mostrar-lhe o quanto era merecedora, o quanto ela era capaz e o quanto o amava. Percorreu a cidade em busca dele por longas horas. Não sabia onde ele morava. Ele nunca a tinha levado à nenhum lugar que pudesse chamar de lar. Mas a tinha apresentado à alguns amigos. Procurou por esses amigos. Amigos dele. E tudo que era dele, ele dividira com os seus.

Cada um tinha uma pequena parte da informação que ela tanto queria. Alguns cobraram pela informação, às vezes bastante caro, mas ela estava disposta a pagar qualquer preço. E sabia o que eles queriam em troca de ajuda. Pagou à cada um com um sorriso no rosto. E alguns se ofereceram para ficar com ela. Mas não. Ela já pertencia a ele. Alguns outros foram mais intransigentes, teimosos até. Mas nada que não pudesse resolver. Afinal, ela trouxera as ferramentas certas.

Depois de várias horas ela chegou àquele hotel enorme e luxuoso. O mesmo de seu primeiro encontro com ele. Quando ele começou a ensiná-la e ela apaixonou-se pelas lições que ele tinha a dar. Ainda suja e desarrumada, foi barrada logo na entrada. Mas estava numa missão sagrada. Uma cruzada só sua. Não podia desistir agora. Empunhado o trovão e o relâmpago que trazia na velha e desgastada bolsa, convenceu o porteiro a deixá-la entrar. Correu através do saguão e escada acima sem dar tempo à qualquer segurança de interrogá-la. Sabia para onde deveria ir. Seu coração lhe apontava o caminho. Voou escada acima com as asas da urgência. Cinco, sete, onze, treze andares. Não sabia se o coração acelerado era devido ao cansaço ou a expectativa de finalmente reencontrá-lo. Caminhou com passos rápidos pelo corredor até a porta do quarto. A plaquinha acima da porta indicava o número mil trezentos e seis. Sabia que era aquele. O mesmo de antes. Tinha de ser aquele. Que outro quarto poderia ser?

A voz dele vindo lá de dentro, distante e abafada, confirmou suas suspeitas. Foi invadida por pura alegria. Sua missão estava quase acabada. Bastava que abrisse aquela porta, se jogasse no chão e implorasse pelo perdão dele. Com aquelas oferendas ele jamais a negaria. Nunca. Jamais. Seriam os dois, juntos novamente, para sempre.

Deixou-se ficar ali um segundo saboreando aquele momento, embevecida com seus próprios devaneios e hipnotizada pela distante voz dele que atravessava aquelas paredes. Um minuto se passou. Depois outro. E mais dois depois deste. E ela perdeu a noção tempo ali, bêbada de expectativa. Seus olhos marejados, suas pernas tremulas, seu íntimo em chamas, só de pensar em revê-lo, tê-lo de novo. O som distante de vozes que a procuravam a trouxe de volta. Bateu na porta e prendeu a respiração quando passos se aproximaram para atender.


------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Sentada na cama, ela chorava. Sentia ainda o os cheiros que deixara, muitas horas antes, no quarto dos pais. O barro divino desmanchado e devassado, privado de sua fonte de luz. Chorava e revivia aqueles últimos momentos com ele. Relembrava cada detalhe daqueles momentos. Os momentos entes de perdê-lo para sempre.

Ele a humilhara, escarnecera, rira alto. Lembrava-se da expressão de divertimento quando lhe mostrara suas oferendas. Ele as chutou, estapeou-a, chutou-a quanto caiu e cuspiu nela. Tudo isso sem interromper aquele terrível riso. Alto, agudo, ferino, descontrolado e ininterrupto. Louco. Só então a outra mulher, que estivera na cama, juntara-se a ele para humilhá-la também. A mulher que lhe tomara o lugar. Aquilo tinha sido demais. Alcançara o trovão guardado na mochila e fulminara a mulher. E novamente implorou a ele que a aceitasse de volta. E novamente ele a negou com aquela risada histérica. E então, gritando, ela o matou. O matou. E o matou de novo. E o matou mais uma vez. Fez chover sobre ele raios e trovões.

Não se lembrava de como chegara de volta em casa. Mas lá estava, sentada em sua cama, em seu quarto. Os poucos cacos que restavam de sua vida a rodeavam e só serviam para lembrá-la de tudo que perdera. Perdera ele. Perdera tudo.

Não fora boa o bastante. Não se esforçara o bastante. Não sacrificara o suficiente. Não tivera forças para mate-lo consigo. E agora nada mais tinha sentido. Nada mais tinha razão. Nada mais havia naquele mundo para ela. Só lhes restava o esquecimento. Sua mão tateou novamente a surrada mochila, tão velha e tão suja, e deixou-se cair na cama. O sol nascia enquanto ela caia. E em sua queda ela chamou pelo trovão uma ultima vez. E ele a atendeu. E quando ela caiu sobre a cama, a cama estilhaçou em um milhão de cacos coloridos. O mundo se estilhaçou. Ela continuou caindo. E caindo. E caindo. E caiu através do mundo. Caiu além do mundo. E continuou caindo. E caindo. E caindo.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O Primeiro Visitante


Foi num dia especialmente cinzento, bem mais cinzento que a maioria, que o pequeno bote surgiu no horizonte. Lutava bravamente com as ondas e o vento. E era, pouco a pouco, derrotado. A pequena vela já fora reduzida a farrapos. Os remos foram perdidos numa das ondas que invadiu o pequenino convés, o mar os levou para longe com a inexorável lentidão do sarcasmo. A única coisa que resistia bravamente a todos os ataques da natureza era o piloto. Sentado firma ao leme, jamais tirava os olhos da terra.

No futuro muito se discutirá se foi pura sorte, graça divina ou a simples habilidade do piloto. Mas o que importa é que o bote esquivou dos recifes e rochedos que circundam a ilha sem bater em nenhum, atravessou a rebentação e, ao ser erguido por uma onda especialmente grande, foi arremessado, certeiro, nas areias da praia. A madeira se partiu e quebrou com a força do impacto. O homem foi jogado à frente, caindo de cara no chão. A boca cheia de areia, o orgulho ferido, mas vivo e inteiro. Alcançara a pequena baia da ilha, único lugar coberto de areia macia. O resto do lugar era coberto de rochas de todos os tipos e tamanhos. De seixos erodidos pela ação de tempo até grandes rochedos com vários metros de altura.

Não era uma ilha muito grande. Apesar da elevação irregular causada pelos rochedos esparsos onde as aves marinhas faziam seus ninhos, a ilha era relativamente plana. Podia-se ver qualquer praia da ilha a partir de qualquer outra praia. Além das ervas rasteiras e dos liquens nada ali havia que chamasse a atenção. Nada além da torre.

Levantando-se, cuspindo e batendo areia das roupas, o convidado seguiu caminhando pela única estrada que leva dali, o fim de seu mundo, através da ilha e até a torre. O seguia um caminho sinuoso até o grande portão de entrada. Vinha de muito, muito longe, sem água ou comida há vários dias. Seu andar trôpego pelo caminho de seixos não deixava dúvidas de que já estava exausto.

Vestia-se de modo comum, à moda das terras do extremo oriente de seu mundo. Mas essas roupas já estavam reduzidas a trapos. A sombra de cores antes vivas e os puídos detalhes bordados mostravam que, originalmente, eram vestes dignas de um nobre. Carregava uma bela espada do lado esquerdo da cintura, presa na faixa que segurava suas roupas, e uma outra espada, de madeira negra, que arrastava pelas pedras do caminho.

Muitos eram os caminhos que levavam àquele lugar. Alguns desses caminhos eram mundos mais longos do que o que o visitante escolhera. Ali, naquela encruzilhada cósmica, ele acreditava que encontraria o fim de sua jornada. Pobre tolo.

O guerreiro tinha um rosto forte, sério, marcado por muitas dores e sofrimentos, batalhas e duelos, vitórias e derrotas, mas, principalmente, pelo tempo. Este que consome a tudo e a todos, lenta e cruelmente já lhe levara quase toda a beleza e a cor. O vento implacavelmente forte da ilha chicoteava seus cabelos longos e maltratados contra seus olhos. Mas ele já não notava, estava fraco demais e perto demais para qualquer tipo de distração.

A torre era um dente do mais puro branco e elevava-se sobre de um pequeno promontório bem no centro da ilha por algumas poucas centenas de metros. Finos e delicados arabescos cobriam as paredes externas. Eram altos-relevos prateados e dourados e se entrelaçavam formando desenhos abstratos desde a base até onde a vista alcançava. Havia quatro janelas na face norte, quatro na face sul, quatro na face leste e outras quatro na face oeste, cada uma distante vários metros de altura uma da outra. E havia o portão.

Sete degraus levavam a ele. O primeiro era de um tom dourado bastante escuro, amarelo e forte. Os outros degraus eram cada vez mais claros em seus tons dourados, até que o sétimo degrau, que tocava o portão, era do mais puro e imaculado ouro branco. Cada degrau tinha um nome que o viajante imediatamente reconheceu. “Valor” era o primeiro, seguido por “Fortitude”, “Resiliencia”, “Convicção”, “Paciência”, “Meditação” e, por último, “ Sabedoria”.

O grande portão era branco como a torre, recortado num nicho pouco profundo voltado para a pequena baía. Os altos-relevos dourados e prateados eram ainda mais abundantes nele. E ele também tinha um nome: “Iluminação”.

Chegando à torre, quase precisa arrastar-se pelos sete degraus que levam até o portão. Ali chegando endireitou o corpo, tomando uma postura mais digna. Erguendo a pesada espada de madeira sobre a cabeça com as duas mãos e reunido toda a energia que lhe restava, golpeou o portão com tanta força que sua espada de madeira negra, banhada no sangue vários dragões e abençoada por um deus, explodiu numa imensidão de pequenas lascas. O portão ressoou como um enorme sino de pura prata, harmônico e melodioso, e seu eco percorreu a torre, câmara á câmara, até atingir o salão da biblioteca, onde era aguardado. Tudo isso, porém, foi inútil, pois o portão nem sequer se abalou. Continuou lá, impassível e imutável, como sempre estivera e sempre estaria.

Negaram-lhe a entrada. Ainda não era a hora, ele ainda não estava pronto.

Seu anfitrião, já ciente de sua chegada desde que tomara a decisão de buscar aquele lugar, observava tudo. Com seu livro aberto nesta estória, ele acompanhava cada ato, cada passo, cada decisão, cada pensamento e cada desejo do guerreiro que lhe golpeava a porta. Julgava-o.

Como era de se esperar, sua teimosia o impediu de ir embora. Ele acendeu uma fogueira entre a escadaria de entrada e a parede da torre usando como lenha pedaços do barco com o qual chegara à ilha e fora destruído pelas ondas. Caçou um dos poucos pinguins que habitavam a ilha e saciou a fome voraz que o torturava. Tentava, em vão, proteger-se do vento cruelmente forte e frio. Todavia, para o seu infortúnio, todos os ventos sopram ali, vindos de todas as direções e convergindo naquela morada.

E assim passaram-se sete dias. E todo dia ele esculpia com uma pequena faca que trouxera nas dobras de suas vestes uma nova espada de madeira com os restos de outros barcos que tentaram a mesma viagem e a destruía contra o portão. Não pronunciou uma palavra durante todo esse tempo. Apenas mantinha sua ameaça silenciosa. Não admitiria a derrota nem que seus ossos brancos, lavados pelas chuvas e pelo vento inclemente fossem todo o testemunho restante de sua passagem por aquele lugar. Caçava, além de pinguins, focas, gaivotas e leões marinhos. Roubava ovos dos poucos ninhos de pássaros que encontrava desprotegidos e tomava água de um mínimo olho d’água ali próximo. Sobrevivia.

Após uma semana naquele estado, exercitando-se com a espada o dia inteiro e lutando contra o frio mortal durante a noite, sua determinação continuava inabalável. Ele morreria ali muito antes de desistir. Sua vontade férrea teria derrubado mil vezes os inimigos que seus músculos não fossem capazes de vencer. Seu espírito vagaria eternamente naquela ilha esquecida antes que recuasse. Estava na hora. Ele estava pronto.

E, ao pôr do sol do sétimo dia, os portões se abriram.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O livro e seu senhor


No gigantesco aposento negro, escuro como apenas o mais total e completo vazio podia ser, ele se movia, lento e lânguido, através de sonhos e desejos de outras pessoas. Aqueles sonhos e desejos flutuavam à sua volta, surgiam e se desfaziam, juntavam-se e esgarçavam-se, subiam e desciam de acordo com a música própria daqueles que os criaram. Sutil trama que eram, delicados, tecido efêmero como a bruma, desfaziam-se ao menor toque apenas para ressurgir novamente mais adiante.

Como que atravessando uma miríade de cortinas de seda e fumaça, ele avançava. Seus passos silenciosos sobre o vácuo que dominava todo aquele lugar inexistente, suas longas vestes arrastavam no solo do nada. Seus brincos, colares, anéis e pulseiras eram todas as estrelas que já existiram. Seus cabelos confundiam-se com a escuridão que o rodeava, negros, longos e indomados.  A pele branca como a névoa da manhã refulgia em uníssono com o brilho dos devaneios flutuantes á sua volta.

Seu destino: a única ilha de existência naquele mar sombrio de vazios e delírios. Um portentoso pedestal de pedra cinzenta, azul e púrpura. O pilar que era o pedestal subia desde o centro de tudo o que existia em todo e qualquer mundo, rasgando cada universo pelo qual passava, tocando cada canto da existência simultaneamente, existindo para todos e para ninguém, em todo lugar e em lugar nenhum. Seria possível até mesmo acreditar que todo o resto girava em torno daquele eixo.

E no topo daquele colosso granítico, ocupando completamente a área de seu ápice, um livro. Um livro velho, gasto. Tão gasto que já não tinha cor. Sua capa ainda mostrava leves sinais do que um dia fora um excelente trabalho de um artesão apaixonado. Alguns altos-relevos e restos de palavras agora irreconhecíveis num idioma que ninguém chegou a aprender. As páginas amarelecidas, ressecadas e quebradiças que surgiam entre as grossas capas estavam carcomidas pelos vermes do tempo, vorazes e impiedosos mesmo frente aos maiores encantos do cosmos.
A criatura aproximou-se do pedestal e pousou suas esguias mãos nas bordas do pilar, com o livro entre elas. E ela contemplou aquele volume com o olhar de um cientista observando o maior experimento de sua vida. Contemplou-o com o olhar do eterno amante que se despede, em seu último suspiro de alívio final, do objeto de sua paixão. Olhou-o como um criador contempla todas as falhas mais íntimas e os mais recônditos meandros da alma de sua criação. E também como o senhor e mestre, que possui e controla , que mantém em suas ditosas mãos a vida e a morte de tudo o que lhe pertence. Pois ele era O Oráculo, senhor daquele reino, e este era seu tomo, onde guardava tudo o que sabia e onde pesquisava para descobrir e aprender mais. Eram seus o passado e o presente. E também era sua a chave para a libertação de todas as mentes e espíritos.

Num movimento firme e decidido, que carregava em si toda a delicadeza das mais belas flores e dos mais apaixonados afagos, o Oráculo abriu seu livro. Uma poderosa luz jorrou daquelas velhas entranhas ao serem desveladas. As pálidas mãos do senhor acariciavam as páginas do servo ao folheá-las, e a cada página folheada, aquilo que antes era a infindável escuridão vazia do nada mais completo que jamais existiu preenchia-se de vida. Ali se descortinavam paixões, guerras, ilusões, vitórias, descobertas, derrotas, alianças e traições. Cada estória, cada acontecimento, cada pensamento de cada mente que existe ou já existiu. Pululavam ao redor do esguio homem, senhor do livro e parte do mesmo, todos as incontáveis estórias contidas dentro daquele eterno volume. Cada uma lida à exaustão, milhares de milhares de vezes desde muito antes da aurora do tempo. Tudo que foi e tudo o que não foi estava ali presente, contidos, todos, numa virada de páginas.

As ágeis mãos, tão habituadas àquelas páginas, encontram onde queriam chegar. Devassado, o livro jorra sua luz sobre o Oráculo que o contempla com os olhos da criança descobrindo os segredos do mundo. Cada vez que abre o livro, é sempre diferente, apesar de exatamente igual. Já lera aquelas estórias nunca lidas incontáveis milhares de vezes, e elas nunca ficariam nem um segundo mais velhas. A sombra de um sorriso toca os eternos lábios do Oráculo, enquanto ele se curva sobre o livro e mergulha em sua luz para ler novamente mais uma estória totalmente nova.