quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Fogo e cinzas


O sol já se punha quando finalmente atravessara o portão da última muralha. Treze ao todo. E treze dias de viagem de um a outro. Só então fora-lhe possível contemplar a torre. Escura, enorme, perdia-se entre as nuvens. Sabia agora que levaria pelo menos mais sete dias antes de poder tocar nos muros, mas a torre já ocupava boa parte de seu campo de visão.

As treze muralhas, que guarneciam os treze portões, eram altas. Cada uma deles tinha centenas de metros de altura. E elas aumentavam, cada uma maior que a anterior. Mas aquilo, aquela torre, era incrível. Absurdo. Poderia passar a eternidade escalando e, tinha certeza, jamais chegaria à metade.

Pôs-se a andar novamente. Jurara desvendar o segredo além das treze muralhas. Não podia desistir agora. Tinha chegado longe demais, sofrido demais, para pensar em retroceder.

A caminhada era difícil. Seus pés machucados, feridos, esfolados pelos meses de caminhada desde os frondosos jardins que circundavam o primeiro portão. O delicioso sol de um verão jovem sobre a relva mais verde e mais macia que já existiu, o delicioso aroma das mais diversas flores, sempre a desabrochar, o saboroso doce de todas as frutas do mundo, maduras e suculentas. A paisagem piorava, tornava-se mais inóspita após cada muralha. Florestas escuras, montanhas nuas, frias e pedregosas, desertos escaldantes, pântanos. Mas ali... Ali era terrível.

O chão era feito de cinzas. Arbustos secos, retorcidos e calcinados surgiam esparsos. O calor, abafado e sufocante, era subitamente substituído por um frio maligno, que entorpecia a alma e feria o corpo. A sua volta, restos e carcaças de outros que tentaram, em vão, a mesma jornada e foram derrotados pelo deserto árido e cinzento do último portão. Um eterno crepúsculo manchava o céu com as cores do fim. Um eterno crepúsculo da vida. Que só pressagiava morte e esquecimento.

Um vento forte açoitou, de repente, seu corpo nu. Frio, cortante, cruel. Não. Não um vento. Pior e mais terrível. Um urro. Um rugido. Vindo direto da torre. Um urro de dor, ira, agonia, ódio, desespero e selvageria. Um rugido que rasgava o espírito e dilacerava a mente, transformando em frangalhos o pouco que restava de sanidade em sua mente já desvairada. Sem proteção contra o terrível vento-urro nem contra a chuva negra que começava a cair só lhe restava proteger os olhos e seguir em frente.

 Deixara tudo que possuía ao cruzar o primeiro portão. Tivera de abandonar tudo, pois esta era uma viagem que teria de realizar só, sem ajuda, com suas próprias forças. Não havia ajuda após o primeiro portão. Nem mesmo guardiões. Os portões estavam sempre abertos e desprotegidos. Pois a entrada era livre à todos. E ninguém nunca voltava.

Dias se passaram. Um caminho maior que o que reparava as muralhas. Muito maior. Os rugidos do vento ainda lhe chicoteavam a carne e o espírito. Lágrimas de sangue lhe manchavam o rosto.  As frequentes tempestades de cinzas feriam seus olhos, a incessante chuva negra queimava-lhe a pele e o chão de cinzas rachava-lhe os pés.

  Ao redor da torre conseguia ver inúmeras formas negras que pareciam dançar no céu ao redor dos eternos muros. Podia sentir uma forte vibração no chão. Presságio do próximo rugido. Mais algumas horas e as asas dos dançarinos eram visíveis. Alguns com belas asas brancas. Outros com terríveis asas negras. Todos envolvidos num louco balé aéreo. Rápido, rodopiante, languido. Branco e preto rodopiando numa enorme espiral ao redor da torre.

Aproximava-se cada vez mais da torre enquanto as belas asas pretas e brancas continuavam sua dança. Dança? Não. Somente a distância confundiria aquilo com dança. Não dançavam. Amavam-se apaixonadamente. Invadiam-se com abandono. Seu voo delirante aumentava o leque de possibilidades. Branco e preto, luz e sombra, começo e fim. Se misturando sem o menor pudor. Uma paixão tão intensa, descontrolada e sem limites que, a cada ato consumado, os participantes explodiam em belíssimas chamas azuis e púrpuras. Eram completamente consumidos. Desapareciam. E o número de dançarinos nunca diminuía.

Foi preciso atravessar a muralha viva de amantes para que continuasse seu caminho. A espiral de asas, em sua revolução constante, às vezes tocava o chão. Alguns pares aventuravam-se sobre as cinzas, outros encostavam-se às paredes da torre e alguns outros, a maioria, preferia consumir-se em chamas purpúreas em pleno ar. Muitos foram os convites para que se juntasse à eles. Alguns tentaram bloquear-lhe o caminho, impedir-lhe o avanço, insistindo em sua participação. Outros até mesmo tocaram-lhe o corpo com a mesma intensidade e lascívia que dedicavam aos parceiros. Tudo para demover-lhe de seu objetivo. Aquele foi, com certeza, o mais difícil dos desafios.

No curto espaço de algumas dezenas de passos milhares de vezes pensou em desistir. Em entregar-se a toda aquela paixão, deixar-se levar naquele infindável rio de prazer e consumir-se completamente numa bela explosão azul e roxa. Mas a torre chamava. Instigava-lhe a avançar. Implorava para que a alcançasse. E, assim, continuou seu caminho. Desvencilhando-se dos últimos pares de asas que tentavam lhe seduzir, avançou em dirão às paredes negras à frente.

Em fim a torre. O espinho negro cravado fundo no coração cinza do mundo. Mais um vento-urro atingiu seu coração. Tão forte, tão intenso, tão cheio de dor, ódio, ira e solidão. Emanava da torre e parecia marcar sua chegada. O rugido da torre reverberava no chão e parecia incentivar as asas ao redor.

Sim. Compreendeu. A Besta estava lá. Desde o início dos tempos. Aprisionada, acorrentada e enterrada na torre eterna. Conhecia as estórias. Dizia-se que sua fúria consumira tudo ao redor de sua cela. Sua agonia abalara toda a realidade, tocara todos os mundos. Seu ódio e desespero envenenaram e consumiram todos os corações que a conheceram. E ainda assim sua luz, para aqueles capazes de enxergá-la, era hipnotizante e terrivelmente atraente. Reveladora.

Quantos já não foram enfeitiçados por essa mesma luz e atraídos à essa mesma jornada através dos jardins do infinito até os desertos do fim, atraídos pela promessa de um rápido vislumbre da chama eterna que existia no coração da Besta, a mais primeva das luzes. Quantos já não foram derrotados no final jornada por não serem capazes de ver o interior da torre.

 A pedra escura da torre mostrava marcas de inúmeros golpes. As eternidades que se repetiam ao seu redor, com todos os seus candidatos ao vislumbre da chama, deixaram muitas marcas na rocha, mas ela continuava lá. Eterna.

 Seu corpo, já enfraquecido, ferido, por todos os rigores da viagem, estava em farrapos. Sem mais forças, beirando a exaustão e o colapso. A chuva negra e ácida, o vento frio e seco, cortante, o solo cáustico e morto de pura cinza, todos esses, deixaram seu corpo e seu espírito completamente derrotados.

 Com a pouca força que lhe restara, procurou um ponto mais desgastado da muralha. Seria sua única chance. Não teria forças para tentar aquilo uma segunda vez. Se falhasse morreria ali, à poucos centímetros daquilo que buscara com tanto afinco e por tanto tempo. Perderia não só sua única chance como também a vida.

 Seu espírito, dilacerado pelos terrores que enfrentará entre os portões e ainda mais castigado pelos urros da torre, que atacavam o coração e alma, se elevou concentrando-se em sua vontade. Seu coração transbordou. Toda a esperança que havia lhe trazido tão longe, todas as lembranças de seus amigos e parceiros que teve de deixar para trás, toda a força de vontade que manteve suas pernas firmes e o corpo ereto por todo esse caminho horrendo, a disciplina aprendida à tanto custo com cada um de seus mestres. Tudo isso acumulou-se, carregando seu espírito e vontade com determinação, coragem, raiva, alegria, ambição, ódio, amor... Tudo que seu coração humano fora capaz de carregar tão longe. E, com tudo isso reunido atacou a torre. Deixou que tudo extravasasse, explodindo, sobre a pedra fria e negra. Atacou o ponto fraco na própria matéria da eternidade. O universo tremeu, o tecido da realidade esgarçou e um urro arrasador, infinitamente pior que todos os outros juntos, abalou a terra, esmigalhou carcaças e arbustos e arremessou os languidos amantes voadores para longe.

Ao cair de joelhos no chão de cinzas, sem energia sequer para permanecer em pé, passou-lhe pela mente a idéia de que tinha falhado. Por um interminável, infinito, segundo seu coração afundou na derrota. Todo o seu ser, tudo o que era, não fora suficiente para superar as eternas muralhas negras. Uma lágrima escapou dos olhos sujos de cinza e sangue coagulado despencando em direção ao cinza estéril do solo. Um segundo eterno.

Então uma luz vinda da muralha iluminou o céu, uma lâmina de aço ardente rasgando o crepúsculo infindável do deserto cinzento. Uma luz forte, cauterizante. Sim! Havia uma abertura na muralha! Ínfima, minúscula, mas suficiente para permitir que a luz escapasse. E, portanto, suficiente para contemplar o interior da torre. Arrastou-se com as últimas forças que lhe restavam e olhou através da minúscula fissura para o interior da torre. E teve seu ser completamente consumido pela visão.

E lá estava ela. A besta. Chifre, asas, presas e garras. Toda envolta em chamas. Seus olhos eram a própria imagem da fúria destruidora, seus enormes músculos, todos retesados e tensos, pareciam prestes a explodir pelo esforço. Mais um urro louco e selvagem se fez ouvir, e junto dele uma golfada de magma incandescente escapou da boca aberta da criatura. A criatura sangrava. Sangrava lava e magma que escorriam pelo chão, transformando o interior da torre num lago incandescente. A cratera de um vulcão ativo.

Seus esforços eram para libertar-se das inúmeras correntes que a prendiam à torre. Ancoradas em vários pontos das paredes, aquelas correntes negras vinham de todas as direções e afundavam na carne da criatura. Grandes arpões e ganchos metálicos igualmente negros perfuravam o corpo a besta e, cada vez que esta se movia, as correntes agarradas aos ganchos e arpões a faziam sangrar ainda mais, aumentando sua agonia e alimentando sua fúria.

Agora era compreensível. Presa ali desde o inicio dos tempos, a luz primal agora odiava tudo e todos pelo que deixaram lhe acontecer. Tantos milênios de sofrimento e esquecimento. Ferida, humilhada, prisioneira e esquecida. Aquela criatura consumiria tudo no dia em que escapasse. Puniria toda a criação por tê-la esquecido. E estaria ela errada?

Voltou sua atenção para o coração da besta. Sim, ali estava o que vinha procurando. Aquele corpo monstruoso e enorme não era capaz de esconder ou diminuir o brilho inconfundível da verdade. Ali estava a primeira luz. O fogo primordial. A primeira paixão e a primeira verdade. Deixou-se cegar por tamanha luz. Mergulhou fundo ali, buscando aquilo que buscava a tanto tempo. Encontrou.

No centro da conflagração titânica que era o coração da besta-chama primordial, divisou um corpo. Preso pelos braços e pernas àquelas chamas por correntes e cravos semelhantes aos que prendiam sua contraparte gigantesca, um corpo jovem, atraente. Crucificado como estava nas chamas, deixava seu sangue escorrer lentamente pelos ferimentos abertos. A cabeça, caída sobre o peito,evidenciava seus longos cabelos louros, tão brilhantes como o fogo a sua volta, derramando-se em cachos até a cintura.

Percebendo sua aproximação, aquele preso nas chamas ergueu os olhos fitando os seus direta e intensamente. Ele lhe sorriu. Um sorriso sedutor, escarnecedor, atraente, misterioso, delicado e a agressivo. Um enigma em si mesmo. Um sorriso que continha todos os outros. Ele sussurrou em seu ouvido. Fez uma proposta. Daria-lhe o que tanto buscava ali se, em troca, lhe desse o que ele queria.

Sim. Sem hesitações ou contestações. Sim. Não teve dúvidas. Sim. Precisava daquilo. Viajara tão longe, sacrificara tanto. E, agora que tinha nas mãos o que viera buscar, não podia negar ou desistir. Então era sim. Daria o que quer que ele desejasse se pudesse retornar com o que procurava.

Com um aceno afirmativo, o prisioneiro alcançou as chamas às suas costas e tirou de lá uma pequenina chama, miniatura da enorme conflagração à qual se prendia, e lhe entregou. Mas não uma simples chama. Uma pluma. Perfeitamente branca e imaculada, envolta no bruxulear da chama primordial. Uma pluma vinda de suas costas. Agora compreendia. Aquela pira gigantesca a qual ele estava preso era, na verdade, suas asas. Asas que emanavam a luz da verdade. Asas que um dia iluminaram toda a criação, e que agora estavam ali, aprisionadas nas trevas, escondidos de tudo e de todos, exceto dos mais obstinados, se não obsecados, em encontrá-la. Reconheceu-o.

Vendo o brilho da compreensão em seus olhos, O Príncipe da Luz lhe sorriu, enquanto tocava lhe o peito, alcançando sua parte da barganha. Sentiu o calor do toque dele em  sua pele, invadindo-lhe o ser e agarrando seu centro. Ele queria seu coração. Deixou no lugar do órgão, a pluma. O calor da pluma tomou seu corpo, mente e espírito. Agora estava em chamas do mesmo modo que a Besta a sua volta estava, do mesmo modo que o Príncipe estava.

Ele agradeceu enquanto punha o coração, que acabara de arrancar de seu peito, no centro das correntes que o prendiam. As correntes o envolveram e se enterraram profundamente nele. E então o Príncipe da Luz estava livre. Com uma risada límpida e harmônica, um perfeito coro da todas as vozes livre da criação, o Príncipe abriu suas asas de luz e chama e levantou voo. Subiu e subiu, em direção ao topo da torre. Subiu até que nem mesmo sua luz era mais visível.

Mas o coração sangrava, queimava e murchava. Aquela liberdade era temporária. Ele teria de voltar quando aquele coração já tivesse forças para conter as correntes. Com a partida do príncipe a besta cauí ao chão. Um coração tão pequenino não tinha força suficiente para sustentar tamanho poder. As chamas de seu corpo imenso começaram a diminuir e se apagar. O magma que sangrava de seus ferimentos esfriava, endurecia e se apagava. As trevas começaram a tomar o interior da torre. Antes que tudo desaparecesse a última visão que teve foi da pequena luz que vinha de seu coração. Brilhava sendo lentamente consumido no centro da antes gigantesca chama primeva.

Sentiu a pequena pluma no lugar onde antes estivera seu coração. Ela pulsava com o poder de milhares de corações. Fazia todo o seu ser arder e pulsar em uníssono com o universo. Era aquilo que tanto buscara? Não. Foram as palavras de despedida do Príncipe que fizeram tudo fazer sentido. Nunca conseguiria se lembrar exatamente do que ele lhe dissera, mas fora o suficiente para iluminar todo o seu ser, fazer com que compreendesse tudo. A pluma era apenas uma doce lembrança, um pequeno mimo de agradecimento.

A escuridão avançava. Tomava todo o lugar e derramava-se em cada canto. Envolvia-lhe todo o ser. Já não divisava sequer o próprio coração. Tendo consigo tudo que queria, tudo o que tanto procurara, tudo que viera buscar, deixou-se envolver e mergulhou fundo abraço pacificador trevas.

E então seus olhos se abriram para a luz. Acordou.

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