Foi num dia especialmente
cinzento, bem mais cinzento que a maioria, que o pequeno bote surgiu no
horizonte. Lutava bravamente com as ondas e o vento. E era, pouco a pouco,
derrotado. A pequena vela já fora reduzida a farrapos. Os remos foram perdidos
numa das ondas que invadiu o pequenino convés, o mar os levou para longe com a
inexorável lentidão do sarcasmo. A única coisa que resistia bravamente a todos
os ataques da natureza era o piloto. Sentado firma ao leme, jamais tirava os
olhos da terra.
No futuro muito se discutirá se
foi pura sorte, graça divina ou a simples habilidade do piloto. Mas o que
importa é que o bote esquivou dos recifes e rochedos que circundam a ilha sem
bater em nenhum, atravessou a rebentação e, ao ser erguido por uma onda
especialmente grande, foi arremessado, certeiro, nas areias da praia. A madeira
se partiu e quebrou com a força do impacto. O homem foi jogado à frente, caindo
de cara no chão. A boca cheia de areia, o orgulho ferido, mas vivo e inteiro. Alcançara
a pequena baia da ilha, único lugar coberto de areia macia. O resto do lugar
era coberto de rochas de todos os tipos e tamanhos. De seixos erodidos pela
ação de tempo até grandes rochedos com vários metros de altura.
Não era uma ilha muito grande.
Apesar da elevação irregular causada pelos rochedos esparsos onde as aves
marinhas faziam seus ninhos, a ilha era relativamente plana. Podia-se ver
qualquer praia da ilha a partir de qualquer outra praia. Além das ervas
rasteiras e dos liquens nada ali havia que chamasse a atenção. Nada além da
torre.
Levantando-se, cuspindo e batendo areia das roupas, o convidado
seguiu caminhando pela única estrada que leva dali, o fim de seu mundo, através
da ilha e até a torre. O seguia um caminho sinuoso até o grande portão de
entrada. Vinha de muito, muito longe, sem água ou comida há vários dias. Seu
andar trôpego pelo caminho de seixos não deixava dúvidas de que já estava exausto.
Vestia-se de modo comum, à moda
das terras do extremo oriente de seu mundo. Mas essas roupas já estavam
reduzidas a trapos. A sombra de cores antes vivas e os puídos detalhes bordados
mostravam que, originalmente, eram vestes dignas de um nobre. Carregava uma
bela espada do lado esquerdo da cintura, presa na faixa que segurava suas
roupas, e uma outra espada, de madeira negra, que arrastava pelas pedras do
caminho.
Muitos eram os caminhos que
levavam àquele lugar. Alguns desses caminhos eram mundos mais longos do que o
que o visitante escolhera. Ali, naquela encruzilhada cósmica, ele acreditava
que encontraria o fim de sua jornada. Pobre tolo.
O guerreiro tinha um rosto forte,
sério, marcado por muitas dores e sofrimentos, batalhas e duelos, vitórias e
derrotas, mas, principalmente, pelo tempo. Este que consome a tudo e a todos,
lenta e cruelmente já lhe levara quase toda a beleza e a cor. O vento
implacavelmente forte da ilha chicoteava seus cabelos longos e maltratados
contra seus olhos. Mas ele já não notava, estava fraco demais e perto demais
para qualquer tipo de distração.
A torre era um dente do mais puro
branco e elevava-se sobre de um pequeno promontório bem no centro da ilha por
algumas poucas centenas de metros. Finos e delicados arabescos cobriam as
paredes externas. Eram altos-relevos prateados e dourados e se entrelaçavam
formando desenhos abstratos desde a base até onde a vista alcançava. Havia
quatro janelas na face norte, quatro na face sul, quatro na face leste e outras
quatro na face oeste, cada uma distante vários metros de altura uma da outra. E
havia o portão.
Sete degraus levavam a ele. O
primeiro era de um tom dourado bastante escuro, amarelo e forte. Os outros
degraus eram cada vez mais claros em seus tons dourados, até que o sétimo
degrau, que tocava o portão, era do mais puro e imaculado ouro branco. Cada
degrau tinha um nome que o viajante imediatamente reconheceu. “Valor” era o
primeiro, seguido por “Fortitude”, “Resiliencia”, “Convicção”, “Paciência”,
“Meditação” e, por último, “ Sabedoria”.
O grande portão era branco como a
torre, recortado num nicho pouco profundo voltado para a pequena baía. Os
altos-relevos dourados e prateados eram ainda mais abundantes nele. E ele também
tinha um nome: “Iluminação”.
Chegando à torre, quase precisa
arrastar-se pelos sete degraus que levam até o portão. Ali chegando endireitou
o corpo, tomando uma postura mais digna. Erguendo a pesada espada de madeira
sobre a cabeça com as duas mãos e reunido toda a energia que lhe restava,
golpeou o portão com tanta força que sua espada de madeira negra, banhada no
sangue vários dragões e abençoada por um deus, explodiu numa imensidão de
pequenas lascas. O portão ressoou como um enorme sino de pura prata, harmônico
e melodioso, e seu eco percorreu a torre, câmara á câmara, até atingir o salão
da biblioteca, onde era aguardado. Tudo isso, porém, foi inútil, pois o portão
nem sequer se abalou. Continuou lá, impassível e imutável, como sempre estivera
e sempre estaria.
Negaram-lhe a entrada. Ainda não
era a hora, ele ainda não estava pronto.
Seu anfitrião, já ciente de sua
chegada desde que tomara a decisão de buscar aquele lugar, observava tudo. Com
seu livro aberto nesta estória, ele acompanhava cada ato, cada passo, cada
decisão, cada pensamento e cada desejo do guerreiro que lhe golpeava a porta. Julgava-o.
Como era de se esperar, sua
teimosia o impediu de ir embora. Ele acendeu uma fogueira entre a escadaria de
entrada e a parede da torre usando como lenha pedaços do barco com o qual
chegara à ilha e fora destruído pelas ondas. Caçou um dos poucos pinguins que
habitavam a ilha e saciou a fome voraz que o torturava. Tentava, em vão,
proteger-se do vento cruelmente forte e frio. Todavia, para o seu infortúnio,
todos os ventos sopram ali, vindos de todas as direções e convergindo naquela
morada.
E assim passaram-se sete dias. E
todo dia ele esculpia com uma pequena faca que trouxera nas dobras de suas
vestes uma nova espada de madeira com os restos de outros barcos que tentaram a
mesma viagem e a destruía contra o portão. Não pronunciou uma palavra durante
todo esse tempo. Apenas mantinha sua ameaça silenciosa. Não admitiria a derrota
nem que seus ossos brancos, lavados pelas chuvas e pelo vento inclemente fossem
todo o testemunho restante de sua passagem por aquele lugar. Caçava, além de pinguins,
focas, gaivotas e leões marinhos. Roubava ovos dos poucos ninhos de pássaros
que encontrava desprotegidos e tomava água de um mínimo olho d’água ali
próximo. Sobrevivia.
Após uma semana naquele estado,
exercitando-se com a espada o dia inteiro e lutando contra o frio mortal
durante a noite, sua determinação continuava inabalável. Ele morreria ali muito
antes de desistir. Sua vontade férrea teria derrubado mil vezes os inimigos que
seus músculos não fossem capazes de vencer. Seu espírito vagaria eternamente
naquela ilha esquecida antes que recuasse. Estava na hora. Ele estava pronto.
E, ao pôr do sol do sétimo dia,
os portões se abriram.
Achei muito interessante. Quem será este velho? O que ele veio procurar ali? Gostei da descrição dele. Aguardo o desdobrar dessa história!
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