quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O Primeiro Visitante


Foi num dia especialmente cinzento, bem mais cinzento que a maioria, que o pequeno bote surgiu no horizonte. Lutava bravamente com as ondas e o vento. E era, pouco a pouco, derrotado. A pequena vela já fora reduzida a farrapos. Os remos foram perdidos numa das ondas que invadiu o pequenino convés, o mar os levou para longe com a inexorável lentidão do sarcasmo. A única coisa que resistia bravamente a todos os ataques da natureza era o piloto. Sentado firma ao leme, jamais tirava os olhos da terra.

No futuro muito se discutirá se foi pura sorte, graça divina ou a simples habilidade do piloto. Mas o que importa é que o bote esquivou dos recifes e rochedos que circundam a ilha sem bater em nenhum, atravessou a rebentação e, ao ser erguido por uma onda especialmente grande, foi arremessado, certeiro, nas areias da praia. A madeira se partiu e quebrou com a força do impacto. O homem foi jogado à frente, caindo de cara no chão. A boca cheia de areia, o orgulho ferido, mas vivo e inteiro. Alcançara a pequena baia da ilha, único lugar coberto de areia macia. O resto do lugar era coberto de rochas de todos os tipos e tamanhos. De seixos erodidos pela ação de tempo até grandes rochedos com vários metros de altura.

Não era uma ilha muito grande. Apesar da elevação irregular causada pelos rochedos esparsos onde as aves marinhas faziam seus ninhos, a ilha era relativamente plana. Podia-se ver qualquer praia da ilha a partir de qualquer outra praia. Além das ervas rasteiras e dos liquens nada ali havia que chamasse a atenção. Nada além da torre.

Levantando-se, cuspindo e batendo areia das roupas, o convidado seguiu caminhando pela única estrada que leva dali, o fim de seu mundo, através da ilha e até a torre. O seguia um caminho sinuoso até o grande portão de entrada. Vinha de muito, muito longe, sem água ou comida há vários dias. Seu andar trôpego pelo caminho de seixos não deixava dúvidas de que já estava exausto.

Vestia-se de modo comum, à moda das terras do extremo oriente de seu mundo. Mas essas roupas já estavam reduzidas a trapos. A sombra de cores antes vivas e os puídos detalhes bordados mostravam que, originalmente, eram vestes dignas de um nobre. Carregava uma bela espada do lado esquerdo da cintura, presa na faixa que segurava suas roupas, e uma outra espada, de madeira negra, que arrastava pelas pedras do caminho.

Muitos eram os caminhos que levavam àquele lugar. Alguns desses caminhos eram mundos mais longos do que o que o visitante escolhera. Ali, naquela encruzilhada cósmica, ele acreditava que encontraria o fim de sua jornada. Pobre tolo.

O guerreiro tinha um rosto forte, sério, marcado por muitas dores e sofrimentos, batalhas e duelos, vitórias e derrotas, mas, principalmente, pelo tempo. Este que consome a tudo e a todos, lenta e cruelmente já lhe levara quase toda a beleza e a cor. O vento implacavelmente forte da ilha chicoteava seus cabelos longos e maltratados contra seus olhos. Mas ele já não notava, estava fraco demais e perto demais para qualquer tipo de distração.

A torre era um dente do mais puro branco e elevava-se sobre de um pequeno promontório bem no centro da ilha por algumas poucas centenas de metros. Finos e delicados arabescos cobriam as paredes externas. Eram altos-relevos prateados e dourados e se entrelaçavam formando desenhos abstratos desde a base até onde a vista alcançava. Havia quatro janelas na face norte, quatro na face sul, quatro na face leste e outras quatro na face oeste, cada uma distante vários metros de altura uma da outra. E havia o portão.

Sete degraus levavam a ele. O primeiro era de um tom dourado bastante escuro, amarelo e forte. Os outros degraus eram cada vez mais claros em seus tons dourados, até que o sétimo degrau, que tocava o portão, era do mais puro e imaculado ouro branco. Cada degrau tinha um nome que o viajante imediatamente reconheceu. “Valor” era o primeiro, seguido por “Fortitude”, “Resiliencia”, “Convicção”, “Paciência”, “Meditação” e, por último, “ Sabedoria”.

O grande portão era branco como a torre, recortado num nicho pouco profundo voltado para a pequena baía. Os altos-relevos dourados e prateados eram ainda mais abundantes nele. E ele também tinha um nome: “Iluminação”.

Chegando à torre, quase precisa arrastar-se pelos sete degraus que levam até o portão. Ali chegando endireitou o corpo, tomando uma postura mais digna. Erguendo a pesada espada de madeira sobre a cabeça com as duas mãos e reunido toda a energia que lhe restava, golpeou o portão com tanta força que sua espada de madeira negra, banhada no sangue vários dragões e abençoada por um deus, explodiu numa imensidão de pequenas lascas. O portão ressoou como um enorme sino de pura prata, harmônico e melodioso, e seu eco percorreu a torre, câmara á câmara, até atingir o salão da biblioteca, onde era aguardado. Tudo isso, porém, foi inútil, pois o portão nem sequer se abalou. Continuou lá, impassível e imutável, como sempre estivera e sempre estaria.

Negaram-lhe a entrada. Ainda não era a hora, ele ainda não estava pronto.

Seu anfitrião, já ciente de sua chegada desde que tomara a decisão de buscar aquele lugar, observava tudo. Com seu livro aberto nesta estória, ele acompanhava cada ato, cada passo, cada decisão, cada pensamento e cada desejo do guerreiro que lhe golpeava a porta. Julgava-o.

Como era de se esperar, sua teimosia o impediu de ir embora. Ele acendeu uma fogueira entre a escadaria de entrada e a parede da torre usando como lenha pedaços do barco com o qual chegara à ilha e fora destruído pelas ondas. Caçou um dos poucos pinguins que habitavam a ilha e saciou a fome voraz que o torturava. Tentava, em vão, proteger-se do vento cruelmente forte e frio. Todavia, para o seu infortúnio, todos os ventos sopram ali, vindos de todas as direções e convergindo naquela morada.

E assim passaram-se sete dias. E todo dia ele esculpia com uma pequena faca que trouxera nas dobras de suas vestes uma nova espada de madeira com os restos de outros barcos que tentaram a mesma viagem e a destruía contra o portão. Não pronunciou uma palavra durante todo esse tempo. Apenas mantinha sua ameaça silenciosa. Não admitiria a derrota nem que seus ossos brancos, lavados pelas chuvas e pelo vento inclemente fossem todo o testemunho restante de sua passagem por aquele lugar. Caçava, além de pinguins, focas, gaivotas e leões marinhos. Roubava ovos dos poucos ninhos de pássaros que encontrava desprotegidos e tomava água de um mínimo olho d’água ali próximo. Sobrevivia.

Após uma semana naquele estado, exercitando-se com a espada o dia inteiro e lutando contra o frio mortal durante a noite, sua determinação continuava inabalável. Ele morreria ali muito antes de desistir. Sua vontade férrea teria derrubado mil vezes os inimigos que seus músculos não fossem capazes de vencer. Seu espírito vagaria eternamente naquela ilha esquecida antes que recuasse. Estava na hora. Ele estava pronto.

E, ao pôr do sol do sétimo dia, os portões se abriram.

Um comentário:

  1. Achei muito interessante. Quem será este velho? O que ele veio procurar ali? Gostei da descrição dele. Aguardo o desdobrar dessa história!

    ResponderExcluir