quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Fogo e cinzas


O sol já se punha quando finalmente atravessara o portão da última muralha. Treze ao todo. E treze dias de viagem de um a outro. Só então fora-lhe possível contemplar a torre. Escura, enorme, perdia-se entre as nuvens. Sabia agora que levaria pelo menos mais sete dias antes de poder tocar nos muros, mas a torre já ocupava boa parte de seu campo de visão.

As treze muralhas, que guarneciam os treze portões, eram altas. Cada uma deles tinha centenas de metros de altura. E elas aumentavam, cada uma maior que a anterior. Mas aquilo, aquela torre, era incrível. Absurdo. Poderia passar a eternidade escalando e, tinha certeza, jamais chegaria à metade.

Pôs-se a andar novamente. Jurara desvendar o segredo além das treze muralhas. Não podia desistir agora. Tinha chegado longe demais, sofrido demais, para pensar em retroceder.

A caminhada era difícil. Seus pés machucados, feridos, esfolados pelos meses de caminhada desde os frondosos jardins que circundavam o primeiro portão. O delicioso sol de um verão jovem sobre a relva mais verde e mais macia que já existiu, o delicioso aroma das mais diversas flores, sempre a desabrochar, o saboroso doce de todas as frutas do mundo, maduras e suculentas. A paisagem piorava, tornava-se mais inóspita após cada muralha. Florestas escuras, montanhas nuas, frias e pedregosas, desertos escaldantes, pântanos. Mas ali... Ali era terrível.

O chão era feito de cinzas. Arbustos secos, retorcidos e calcinados surgiam esparsos. O calor, abafado e sufocante, era subitamente substituído por um frio maligno, que entorpecia a alma e feria o corpo. A sua volta, restos e carcaças de outros que tentaram, em vão, a mesma jornada e foram derrotados pelo deserto árido e cinzento do último portão. Um eterno crepúsculo manchava o céu com as cores do fim. Um eterno crepúsculo da vida. Que só pressagiava morte e esquecimento.

Um vento forte açoitou, de repente, seu corpo nu. Frio, cortante, cruel. Não. Não um vento. Pior e mais terrível. Um urro. Um rugido. Vindo direto da torre. Um urro de dor, ira, agonia, ódio, desespero e selvageria. Um rugido que rasgava o espírito e dilacerava a mente, transformando em frangalhos o pouco que restava de sanidade em sua mente já desvairada. Sem proteção contra o terrível vento-urro nem contra a chuva negra que começava a cair só lhe restava proteger os olhos e seguir em frente.

 Deixara tudo que possuía ao cruzar o primeiro portão. Tivera de abandonar tudo, pois esta era uma viagem que teria de realizar só, sem ajuda, com suas próprias forças. Não havia ajuda após o primeiro portão. Nem mesmo guardiões. Os portões estavam sempre abertos e desprotegidos. Pois a entrada era livre à todos. E ninguém nunca voltava.

Dias se passaram. Um caminho maior que o que reparava as muralhas. Muito maior. Os rugidos do vento ainda lhe chicoteavam a carne e o espírito. Lágrimas de sangue lhe manchavam o rosto.  As frequentes tempestades de cinzas feriam seus olhos, a incessante chuva negra queimava-lhe a pele e o chão de cinzas rachava-lhe os pés.

  Ao redor da torre conseguia ver inúmeras formas negras que pareciam dançar no céu ao redor dos eternos muros. Podia sentir uma forte vibração no chão. Presságio do próximo rugido. Mais algumas horas e as asas dos dançarinos eram visíveis. Alguns com belas asas brancas. Outros com terríveis asas negras. Todos envolvidos num louco balé aéreo. Rápido, rodopiante, languido. Branco e preto rodopiando numa enorme espiral ao redor da torre.

Aproximava-se cada vez mais da torre enquanto as belas asas pretas e brancas continuavam sua dança. Dança? Não. Somente a distância confundiria aquilo com dança. Não dançavam. Amavam-se apaixonadamente. Invadiam-se com abandono. Seu voo delirante aumentava o leque de possibilidades. Branco e preto, luz e sombra, começo e fim. Se misturando sem o menor pudor. Uma paixão tão intensa, descontrolada e sem limites que, a cada ato consumado, os participantes explodiam em belíssimas chamas azuis e púrpuras. Eram completamente consumidos. Desapareciam. E o número de dançarinos nunca diminuía.

Foi preciso atravessar a muralha viva de amantes para que continuasse seu caminho. A espiral de asas, em sua revolução constante, às vezes tocava o chão. Alguns pares aventuravam-se sobre as cinzas, outros encostavam-se às paredes da torre e alguns outros, a maioria, preferia consumir-se em chamas purpúreas em pleno ar. Muitos foram os convites para que se juntasse à eles. Alguns tentaram bloquear-lhe o caminho, impedir-lhe o avanço, insistindo em sua participação. Outros até mesmo tocaram-lhe o corpo com a mesma intensidade e lascívia que dedicavam aos parceiros. Tudo para demover-lhe de seu objetivo. Aquele foi, com certeza, o mais difícil dos desafios.

No curto espaço de algumas dezenas de passos milhares de vezes pensou em desistir. Em entregar-se a toda aquela paixão, deixar-se levar naquele infindável rio de prazer e consumir-se completamente numa bela explosão azul e roxa. Mas a torre chamava. Instigava-lhe a avançar. Implorava para que a alcançasse. E, assim, continuou seu caminho. Desvencilhando-se dos últimos pares de asas que tentavam lhe seduzir, avançou em dirão às paredes negras à frente.

Em fim a torre. O espinho negro cravado fundo no coração cinza do mundo. Mais um vento-urro atingiu seu coração. Tão forte, tão intenso, tão cheio de dor, ódio, ira e solidão. Emanava da torre e parecia marcar sua chegada. O rugido da torre reverberava no chão e parecia incentivar as asas ao redor.

Sim. Compreendeu. A Besta estava lá. Desde o início dos tempos. Aprisionada, acorrentada e enterrada na torre eterna. Conhecia as estórias. Dizia-se que sua fúria consumira tudo ao redor de sua cela. Sua agonia abalara toda a realidade, tocara todos os mundos. Seu ódio e desespero envenenaram e consumiram todos os corações que a conheceram. E ainda assim sua luz, para aqueles capazes de enxergá-la, era hipnotizante e terrivelmente atraente. Reveladora.

Quantos já não foram enfeitiçados por essa mesma luz e atraídos à essa mesma jornada através dos jardins do infinito até os desertos do fim, atraídos pela promessa de um rápido vislumbre da chama eterna que existia no coração da Besta, a mais primeva das luzes. Quantos já não foram derrotados no final jornada por não serem capazes de ver o interior da torre.

 A pedra escura da torre mostrava marcas de inúmeros golpes. As eternidades que se repetiam ao seu redor, com todos os seus candidatos ao vislumbre da chama, deixaram muitas marcas na rocha, mas ela continuava lá. Eterna.

 Seu corpo, já enfraquecido, ferido, por todos os rigores da viagem, estava em farrapos. Sem mais forças, beirando a exaustão e o colapso. A chuva negra e ácida, o vento frio e seco, cortante, o solo cáustico e morto de pura cinza, todos esses, deixaram seu corpo e seu espírito completamente derrotados.

 Com a pouca força que lhe restara, procurou um ponto mais desgastado da muralha. Seria sua única chance. Não teria forças para tentar aquilo uma segunda vez. Se falhasse morreria ali, à poucos centímetros daquilo que buscara com tanto afinco e por tanto tempo. Perderia não só sua única chance como também a vida.

 Seu espírito, dilacerado pelos terrores que enfrentará entre os portões e ainda mais castigado pelos urros da torre, que atacavam o coração e alma, se elevou concentrando-se em sua vontade. Seu coração transbordou. Toda a esperança que havia lhe trazido tão longe, todas as lembranças de seus amigos e parceiros que teve de deixar para trás, toda a força de vontade que manteve suas pernas firmes e o corpo ereto por todo esse caminho horrendo, a disciplina aprendida à tanto custo com cada um de seus mestres. Tudo isso acumulou-se, carregando seu espírito e vontade com determinação, coragem, raiva, alegria, ambição, ódio, amor... Tudo que seu coração humano fora capaz de carregar tão longe. E, com tudo isso reunido atacou a torre. Deixou que tudo extravasasse, explodindo, sobre a pedra fria e negra. Atacou o ponto fraco na própria matéria da eternidade. O universo tremeu, o tecido da realidade esgarçou e um urro arrasador, infinitamente pior que todos os outros juntos, abalou a terra, esmigalhou carcaças e arbustos e arremessou os languidos amantes voadores para longe.

Ao cair de joelhos no chão de cinzas, sem energia sequer para permanecer em pé, passou-lhe pela mente a idéia de que tinha falhado. Por um interminável, infinito, segundo seu coração afundou na derrota. Todo o seu ser, tudo o que era, não fora suficiente para superar as eternas muralhas negras. Uma lágrima escapou dos olhos sujos de cinza e sangue coagulado despencando em direção ao cinza estéril do solo. Um segundo eterno.

Então uma luz vinda da muralha iluminou o céu, uma lâmina de aço ardente rasgando o crepúsculo infindável do deserto cinzento. Uma luz forte, cauterizante. Sim! Havia uma abertura na muralha! Ínfima, minúscula, mas suficiente para permitir que a luz escapasse. E, portanto, suficiente para contemplar o interior da torre. Arrastou-se com as últimas forças que lhe restavam e olhou através da minúscula fissura para o interior da torre. E teve seu ser completamente consumido pela visão.

E lá estava ela. A besta. Chifre, asas, presas e garras. Toda envolta em chamas. Seus olhos eram a própria imagem da fúria destruidora, seus enormes músculos, todos retesados e tensos, pareciam prestes a explodir pelo esforço. Mais um urro louco e selvagem se fez ouvir, e junto dele uma golfada de magma incandescente escapou da boca aberta da criatura. A criatura sangrava. Sangrava lava e magma que escorriam pelo chão, transformando o interior da torre num lago incandescente. A cratera de um vulcão ativo.

Seus esforços eram para libertar-se das inúmeras correntes que a prendiam à torre. Ancoradas em vários pontos das paredes, aquelas correntes negras vinham de todas as direções e afundavam na carne da criatura. Grandes arpões e ganchos metálicos igualmente negros perfuravam o corpo a besta e, cada vez que esta se movia, as correntes agarradas aos ganchos e arpões a faziam sangrar ainda mais, aumentando sua agonia e alimentando sua fúria.

Agora era compreensível. Presa ali desde o inicio dos tempos, a luz primal agora odiava tudo e todos pelo que deixaram lhe acontecer. Tantos milênios de sofrimento e esquecimento. Ferida, humilhada, prisioneira e esquecida. Aquela criatura consumiria tudo no dia em que escapasse. Puniria toda a criação por tê-la esquecido. E estaria ela errada?

Voltou sua atenção para o coração da besta. Sim, ali estava o que vinha procurando. Aquele corpo monstruoso e enorme não era capaz de esconder ou diminuir o brilho inconfundível da verdade. Ali estava a primeira luz. O fogo primordial. A primeira paixão e a primeira verdade. Deixou-se cegar por tamanha luz. Mergulhou fundo ali, buscando aquilo que buscava a tanto tempo. Encontrou.

No centro da conflagração titânica que era o coração da besta-chama primordial, divisou um corpo. Preso pelos braços e pernas àquelas chamas por correntes e cravos semelhantes aos que prendiam sua contraparte gigantesca, um corpo jovem, atraente. Crucificado como estava nas chamas, deixava seu sangue escorrer lentamente pelos ferimentos abertos. A cabeça, caída sobre o peito,evidenciava seus longos cabelos louros, tão brilhantes como o fogo a sua volta, derramando-se em cachos até a cintura.

Percebendo sua aproximação, aquele preso nas chamas ergueu os olhos fitando os seus direta e intensamente. Ele lhe sorriu. Um sorriso sedutor, escarnecedor, atraente, misterioso, delicado e a agressivo. Um enigma em si mesmo. Um sorriso que continha todos os outros. Ele sussurrou em seu ouvido. Fez uma proposta. Daria-lhe o que tanto buscava ali se, em troca, lhe desse o que ele queria.

Sim. Sem hesitações ou contestações. Sim. Não teve dúvidas. Sim. Precisava daquilo. Viajara tão longe, sacrificara tanto. E, agora que tinha nas mãos o que viera buscar, não podia negar ou desistir. Então era sim. Daria o que quer que ele desejasse se pudesse retornar com o que procurava.

Com um aceno afirmativo, o prisioneiro alcançou as chamas às suas costas e tirou de lá uma pequenina chama, miniatura da enorme conflagração à qual se prendia, e lhe entregou. Mas não uma simples chama. Uma pluma. Perfeitamente branca e imaculada, envolta no bruxulear da chama primordial. Uma pluma vinda de suas costas. Agora compreendia. Aquela pira gigantesca a qual ele estava preso era, na verdade, suas asas. Asas que emanavam a luz da verdade. Asas que um dia iluminaram toda a criação, e que agora estavam ali, aprisionadas nas trevas, escondidos de tudo e de todos, exceto dos mais obstinados, se não obsecados, em encontrá-la. Reconheceu-o.

Vendo o brilho da compreensão em seus olhos, O Príncipe da Luz lhe sorriu, enquanto tocava lhe o peito, alcançando sua parte da barganha. Sentiu o calor do toque dele em  sua pele, invadindo-lhe o ser e agarrando seu centro. Ele queria seu coração. Deixou no lugar do órgão, a pluma. O calor da pluma tomou seu corpo, mente e espírito. Agora estava em chamas do mesmo modo que a Besta a sua volta estava, do mesmo modo que o Príncipe estava.

Ele agradeceu enquanto punha o coração, que acabara de arrancar de seu peito, no centro das correntes que o prendiam. As correntes o envolveram e se enterraram profundamente nele. E então o Príncipe da Luz estava livre. Com uma risada límpida e harmônica, um perfeito coro da todas as vozes livre da criação, o Príncipe abriu suas asas de luz e chama e levantou voo. Subiu e subiu, em direção ao topo da torre. Subiu até que nem mesmo sua luz era mais visível.

Mas o coração sangrava, queimava e murchava. Aquela liberdade era temporária. Ele teria de voltar quando aquele coração já tivesse forças para conter as correntes. Com a partida do príncipe a besta cauí ao chão. Um coração tão pequenino não tinha força suficiente para sustentar tamanho poder. As chamas de seu corpo imenso começaram a diminuir e se apagar. O magma que sangrava de seus ferimentos esfriava, endurecia e se apagava. As trevas começaram a tomar o interior da torre. Antes que tudo desaparecesse a última visão que teve foi da pequena luz que vinha de seu coração. Brilhava sendo lentamente consumido no centro da antes gigantesca chama primeva.

Sentiu a pequena pluma no lugar onde antes estivera seu coração. Ela pulsava com o poder de milhares de corações. Fazia todo o seu ser arder e pulsar em uníssono com o universo. Era aquilo que tanto buscara? Não. Foram as palavras de despedida do Príncipe que fizeram tudo fazer sentido. Nunca conseguiria se lembrar exatamente do que ele lhe dissera, mas fora o suficiente para iluminar todo o seu ser, fazer com que compreendesse tudo. A pluma era apenas uma doce lembrança, um pequeno mimo de agradecimento.

A escuridão avançava. Tomava todo o lugar e derramava-se em cada canto. Envolvia-lhe todo o ser. Já não divisava sequer o próprio coração. Tendo consigo tudo que queria, tudo o que tanto procurara, tudo que viera buscar, deixou-se envolver e mergulhou fundo abraço pacificador trevas.

E então seus olhos se abriram para a luz. Acordou.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Chegando ao Banquete


Degrau a degrau eles avançavam. Subiam passo a passo. Desde que o portão fechara à suas costas aquela escadaria os desafiara. Começaram subindo pelo fosso oco que era o salão de entrada da torre. Nenhuma decoração, Apenas a pedra branca e os arabescos prateados.

O guerreiro mal podia ver diferença entre ali e o exterior. A escada, do mesmo material das paredes e com os mesmos detalhes em relevo, seguia subindo em espiral em torno do que parecia o pilar central da torre. À distancia nem sequer conseguia diferenciar os degraus da pedra que constituía o pilar e as paredes circundantes. Podia jurar que os degraus surgiam ao se aproximar deles e desapareciam logo após sua passagem. O branco e o prateado que os rodeava parecia infinito tanto para cima quanto para baixo. Rapidamente perdeu a noção do quanto tinham avançado.

Subiam e subiam. Caminharam por uma vida inteira antes que ele percebesse a nevoa. Não estava cansado. Caminhara, correra e lutara sua vida inteira sobre a terra, sobre a lama, sobre os corpos de seus inimigos. Lutara por mais tempo e com mais inimigos do que qualquer exercito. Não seria derrotado por uma simples escada. Um passo depois do outro, cada degrau um novo inimigo derrotado. Ele continuou subindo.

Mas a nevoa começou a adensar, borrando-lhe a vista, dificultando seus passos. Com uma mão encostada na parede do gigantesco pilar central, seguia a silhueta de seu anfitrião, borrada e difusa em meio á bruma. A nevoa começou a dificultar-lhe a respiração e a deixar a pedra branca úmida e escorregadia. Já não via mais o branco do pilar ou dos degraus. Tudo era cinza nebuloso. Nem mesmo via mais a silhueta do que ia a sua frente. Mas o caminho era um só: Em frente e acima. Sabia para onde ir. Não pararia por nada. Nunca tinham feito aquele homem desviar de seu caminho nem tinham impedido seu avanço. Recuar era a morte e, pior, a desonra, a ignomínia, o esquecimento. Ele continuaria, avançaria sempre.

Começou a notar sombras tênues, distantes, movendo-se em meio à densa neblina que o redoava. Cinzas mais profundos destacados contra o leve cinza do resto do ambiente. Moviam-se rápido, mais distantes do que arriscava distanciar-se do pilar. Não tinha noção de onde terminariam os degraus. Não podia mais ver o abismo que sabia encontrar-se ao fim daqueles degraus. Nenhum corrimão, sacada ou parede o impediria de cair. Lembrava-se das palavras daquele que lhe abrira os portões, os avisos que dera e as ameaças que fizera.

                - O que procuras encontra-se no fim desta escadaria, no mais alto cômodo desta torre.- Dissera-lhe o anfitrião. Sua voz era solene, poderosa, porem amável. Dava seu aviso como se realmente se importasse - Mas ouve bem, mortal. Ouve com atenção. Este é um caminho sem volta. Uma vez que dê o primeiro passo nesta jornada, jamais poderá voltar.- A voz parecia ecoar por todo o mundo antes de sair de dentro do pesado capuz que lhe escondia o rosto.

                -Nunca recuei frente a nenhum desafio, nunca fui barrado por inimigo algum. Nada, deus, demônio ou espírito, jamais impediu meu avanço. Não vivi tanto tempo para ser derrotado agora.

                -Muito bem. Se assim desejas. Entregue sua espada. Eu a devolverei quando chegar ao seu destino. E se lá não chegar, ela não lhe será útil.

                -Sabe que sou tão mortífero com ou sem a espada, não é? Esta espada é apenas uma ferramenta. Minha arte descansa em meus braços, em meu corpo e em meu espírito.

                -É bom que tenha esta compreensão. Tornará tua viagem menos difícil. Agora vem. Prossigamos.

E os dois começaram a subida tanto tempo antes, mais de uma vida atrás.

Um passo. Mais outro. A cada degrau que subia a neblina se adensava, escurecia. Também aumentavam as sombras que se moviam, ocultas. Às vezes pareciam próximas o suficiente para que pudesse tocá-las, outras vezes estavam tão distantes que mal podia distingui-las do resto da névoa. E o número delas crescia, assim como a escuridão. Em pouco tempo já conseguia ver que aquelas sobras, agora tão numerosas e se movendo tão rápidas. E tinham olhos. Pequenos pontos brilhantes, um brilho intenso e longínquo, de várias cores diferentes.

Assim como seu guia a muito sumira na bruma, a própria bruma desaparecera frente ao negrume que se seguiu. Tantas eram as sombras à sua volta que agora tudo era negro. Uma escuridão profunda e inexorável, interrompida apenas pelo voo errático daqueles distantes pontos brilhantes, multicoloridos. Podia sentir a parede do pilar contra seus dedos e os degraus, sólidos, sob seus pés. Mas estavam a muito perdidos, ocultos, invisíveis.

Caminhava cego pela escuridão, tenso, atento. Cada sentido seu em alerta total. Seus instintos combativos, sua experiência em incontáveis campos de batalha, lhe dizia o tempo todo que poderia ser atacado a qualquer momento. Mas não ouvia mais nada, não enxergava nada. Nenhum cheiro, nem mesmo aroma característico de névoa, de vapor. Nada sentia a não ser o frio toque da pedra contra seus dedos e seus pés. Só via aquelas distantes estrelas coloridas voando à distancia.

Foi quando percebeu uma leve iluminação à frente. Era baça, mas trazia algum conforto frente ao vazio que o rodeava. Soube, então que estava perto de seu destino. Aquela viagem logo teria fim. Seu objetivo estava quase à sua frente. Acelerou o passo. A luz foi aumentando, trazendo com ela um calor reconfortante. Seu coração acelerou. A proximidade com o fim daquele caminho insólito dava-o forças. O clarão cresceu cada vez mais, seus olhos doíam com a luz, e o calor agora era abrasador. Podia ouvir o crepitar de um grande fogo. As estrelas dançantes ao longe já não dançavam. Observavam, estáticas, seu avanço em direção à enorme fogueira que se insinuava à sua frente. Já não caminhava. Corria em direção à luz. Sua pele ardia, os olhos, doloridos, mantinham-se abertos apenas pela poderosa força de vontade de seu dono. O cheiro de fogo sem fumaça, de tempestade e algo mais. Algo que demorou à identificar.
Era o pesado cheiro de tempo. O cheiro de tempo demais. O aroma que só os muito velhos conseguiam apenas imaginar, O cheiro de como seria depois que envelhecessem mais algumas vidas inteiras. E tudo aquilo vinha em sua direção cada vez mais rápido, cada vez mais intenso. Uma velha tempestade de fogo que crescia a cada passo. Até explodir á sua frente ocupando todos os seus sentidos.

Quando conseguiu abrir os olhos novamente, a névoa tinha desaparecido. As estrelas, antes dançantes, estavam próximas e não mais voavam, se arrastavam pelo firmamento. Astros giravam e se moviam lentamente no espaço infinito ao seu redor. O pilar e a escada continuavam em direção ao infinito negro, mas agora via planetas, estrelas e galáxias em seu eterno balé cósmico. O universo girava em torno do caminho que seguia. Olhou para baixo. A escadaria surgia de uma esfera de fogo azul, com tentáculos de labaredas arroxeadas agitando-se em volta do caminho que seguira até ali. Uma enorme estrela azul purpúrea. Via dançarinos naquelas labaredas gigantes. Seus cabelos deixavam o rastro do fogo para trás. Dançarinos e dragões. As caudas dos dragões incendiavam o vazio. Nas enormes erupções que escapavam da estrela os dançarinos, e seus cabelos em chamas, e os dragões, com suas caudas inflamadas, iluminavam tudo a seu redor e desintegravam tudo o que tocavam. Alguns planetas próximos demais desapareceram enquanto o guerreiro observava a bela revolução das chamas estelares.

Por um segundo ele não conseguiu respirar. A grandiosidade de tudo que via o arrebatava. Enfrentara os mais altos deuses e os mais terríveis demônios e seus exércitos, mas nada fora tão grandioso, incrível e majestoso quanto o que via ali. Toda a criação dançando e girando à sua frente.

Teria passado mais alguns séculos contemplando tudo aquilo, mas uma presença a seu lado o fez acordar de seu devaneio. Ali estava o grande manto negro, de capuz pesado e cheio de detalhes dourados. Seu guia. Estava simplesmente parado a seu lado, como se esperasse algo. Ele nada disse, nem sequer se moveu. Mas o guerreiro entendeu. Tinha esquecido seu objetivo. Por um segundo tinha deixado para trás sua busca, embevecido nas belezas do cosmo. Deveria ficar irritado, deveria se repreender. E o teria feito se fosse mais moço. Mas tudo que pode fazer foi dar um leve sorriso meio arrependido:

                -Perdoe a mente enfraquecida de um velho. Os anos nos fazem divagar cada vez com mais frequência e por mais tempo. Mas já estou pronto para prosseguir.

Com um rápido aceno de cabeça o guia deu-lhe as costas e pôs-se a caminho. Eles voltaram a subir.

Galáxias morreram e galáxias nasceram. Estrelas engoliram a si próprias, ruminaram-se por várias eras e regurgitaram novos universos. A vida surgiu e desapareceu várias vezes em muitos mundos. Grandes naus singraram os vazios do cosmos e várias raças guerrearam entre os corpos celestes em eterna revolução. E eles continuavam subindo. Subindo eternamente.

Subiram tanto que todos os corpos celestes se distanciaram. Sumiram na distancia muito abaixo deles. E só restou o pilar, a escada, os dois peregrinos e a escuridão do vácuo.

Então uma poderosa luz rasgou o negrume do universo e sumiu na distancia acima deles. Então veio outra. Igualmente branca e resplandecente, coruscando numa velocidade imensa na escuridão. E então mais outra dessas pequenas estrelas cadentes. E outra. E outras. Várias delas. Vindas do nada abaixo e desaparecendo muito, muito acima. Então ele notou. Havia um pequeno ponto luminoso lá no alto. Um ponto onde aquelas estrelas cadentes pareciam convergir.

Eles continuaram subindo. E o ponto luminoso aumentou. Outra estrela. Mas essa era maior, mais densa, mais quente que aquela da qual tinha emergido tanto tempo antes. E era amarela e vermelha, como as chamas de uma fogueira. As estrelas cadentes se chocavam com as enormes erupções que fugiam da estrela vermelha e explodiam numa chuva de luz prateada e laranja. Aqui os dançarinos eram menos graciosos. Seus movimentos mais duros e pesados, mas ainda assim belos. Golpeavam cada estrela candente com bastões de chamas, despedaçando-as. Os dragões, antes majestosos, aqui eram pura fúria. Abocanhavam cada estrela e as destruíam entre seus dentes. Ali se travava uma verdadeira guerra.

Então veio uma estrela diferente. Esta tinha o tom daquela primeira estrela que haviam visto, azul purpúrea. Esta vinha mais rápida e era maior que as outras. Dragões e dançarinos investiram contra ela, mas foram destruídos em sua passagem. A estrela cadente continuou sua jornada até chocar-se com a grande estrela. Checaram-se. E a estrela cadente adentrou a grande vermelha. E suas cores se misturaram. Os dançarinos e os dragões começaram a morrer e a grande estrela, agora vermelho sanguíneo, começou a pulsar.

Enquanto continuava a subir acima de toda aquela revolução, o velho guerreiro viu a estrela de sangue tornar-se duas. Depois tornar-se quatro. E então muitas. E antes que ela sumisse na distancia abaixo deles, jurou poder ver um pequenino rosto em meio às chamas de incontáveis estrelas.

Foi então que um céu formou-se acima deles. Parecia granito, com seus pequenos cristais brilhantes de diferentes cores. Caminharam bastante em direção ao céu granito acima deles. Séculos de caminhada, sempre ascendente. Incontáveis degraus. Então um estrondo, um trovão gigantesco. Seguido por outro ainda maior, algo quebrando-se em várias partes. Uma rachadura no céu, distante deles. E alguém caindo através da rachadura. Uma mulher. Nua, ela caia de costas, as mãos e os pés soltos, flácidos, estendidos ao sabor da queda. E ela chorava. Chorava silenciosamente. Chorava lagrimas de sangue. E o mesmo sangue manchava suas mãos e seu peito. Ela olhou para eles. Olhou para ele. Mas seu olhar nada tinha de pedir ajuda. Apenas resignação. A triste aceitação dos que decidem pagar o preço final. E continuou caindo.

                -Vamos deixa-la cair? Não podemos ajudá-la?- Perguntou o guerreiro a seu guia.

                -Não. O caminho dela não é este. Cada um deve seguir seu próprio caminho, seja este doloroso como for. Nossos caminhos são nossos e apenas nossos. E o dela está apenas começando.

                -E se decidisse tentar ajudá-la?- Questionou o velho combatente, com o tom ríspido dos que passaram a vida desafiando o destino e indo contra as normas.

                -Cairia.-Foi a resposta que lhe veio de dentro do manto inescrutável.

                -E então?

                -Como foste avisado ao começar a trilhar este caminho, jamais chegaria onde deseja e esta estrada estaria perdida para sempre.

Um último olhar em direção a pobre mulher que despencava e ele pôs-se à caminho novamente. Continuaram subindo. Cada vez mais próximos do céu duro e rachado acima. E eles subiam ainda mais. E várias eras passaram enquanto subiam. E aquilo que era granito já não era mais. Enormes rostos de varias cores formavam aquele firmamento tão concreto. Cada pequeno cristal do granito era uma face perfeitamente esculpida, cada expressão diferente. Dor, prazer, tristeza, êxtase, agonia, felicidade, desespero, alegria. E uma delas, distante, estava arruinada, destruída. Por detrás dela outros rostos eram visíveis. Menores, mais numerosos e igualmente perfeitos. E no escuro de seus olhos, rostos ainda menores. E outros rostos ainda menores nos olhos destes.

A escada seguia até tocar um destes rostos. A boca deste estava aberta. E nesta bocarra, três portas fitavam o guerreiro.

Uma delas estava escancarada. E lá ele via imagens de sua vida. Via suas batalhas, suas vitórias, suas alegrias, suas glórias. E todo o inverso delas. Via também seu caminho até aquele lugar. Viu a pobre garota caindo.

A segunda estava levemente entreaberta. Tão pequena era a fresta da abertura que só podia ver a luz que vinha de trás da porta e imaginar o que havia ali.

A terceira estava fechada.

                -Uma destas portas está trancada.-Disse o guia, com sua voz profunda e calma.- Nem eu nem você temos a chave nem temos permissão para atravessá-la. É teu dever escolher qual delas cruzará. Apenas uma te levará ao destino que desejas.

                -É este o final da jornada?- perguntou o guerreiro.

                -Não.- respondeu secamente a voz dentro do manto.- Este é apenas o final desta escada. E o começo do que quer que esteja por vir. Mas lembre-se: uma vez feita a escolha, não poderás voltar atrás.

O guerreiro fitou as portas. Muitos deuses surgiram e desapareceram enquanto ele divagava. Seria ele capaz de derrubar a porta trancada? E a porta já aberta? Teria ele algum interesse nela? Havia também uma porta entreaberta. O que ela guardaria? E se tentasse a porta trancada e falhasse? Teria de voltar por onde veio? Voltar ao mundo que deixara já nem sabia quanto tempo atrás?

Respirando fundo, o guerreiro juntou todo seu espírito, sua coragem e sua força de vontade. Tinha de tomar ali uma decisão que poderia mudar completamente o seu destino. Uma decisão que poderia destruí-lo. Soltou o ar lentamente, relaxando os músculos como que se preparando para um combate. E, com um movimento súbito, fluido e firme, atravessou a porta entreaberta.

Deu por si num salão de banquete. A mesa estava posta. Quatro cadeiras em torno da grande e suntuosa mesa. As paredes eram da mesma pedra branca com detalhes prateados. Um gigantesco candelabro ocupava todo o teto do grande aposento, varias dezenas de metros de diâmetro. Numa das grandes cadeiras o redor da mesa, um garoto de seus dezesseis anos, pele bronzeada, olhos azuis luminosos e completamente nu, sorria sarcasticamente para ele.

Atordoado, o guerreiro voltou-se para a porta. Lá estava ele. Aquele que procurara por tanto tempo. O Oráculo. De formas esguias e andróginas, pele muito branca, cabelos negros, vestes escuras, brincos, pulseiras e colares resplandecentes como estrelas. Segurava um manto pesado e, com um sorriso, fechou a porta e disse:

                -Bem vindo ao meu salão. Sinta-se confortável. O jantar será servido em breve. Nem todos os convidados chegaram.