quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O livro e seu senhor


No gigantesco aposento negro, escuro como apenas o mais total e completo vazio podia ser, ele se movia, lento e lânguido, através de sonhos e desejos de outras pessoas. Aqueles sonhos e desejos flutuavam à sua volta, surgiam e se desfaziam, juntavam-se e esgarçavam-se, subiam e desciam de acordo com a música própria daqueles que os criaram. Sutil trama que eram, delicados, tecido efêmero como a bruma, desfaziam-se ao menor toque apenas para ressurgir novamente mais adiante.

Como que atravessando uma miríade de cortinas de seda e fumaça, ele avançava. Seus passos silenciosos sobre o vácuo que dominava todo aquele lugar inexistente, suas longas vestes arrastavam no solo do nada. Seus brincos, colares, anéis e pulseiras eram todas as estrelas que já existiram. Seus cabelos confundiam-se com a escuridão que o rodeava, negros, longos e indomados.  A pele branca como a névoa da manhã refulgia em uníssono com o brilho dos devaneios flutuantes á sua volta.

Seu destino: a única ilha de existência naquele mar sombrio de vazios e delírios. Um portentoso pedestal de pedra cinzenta, azul e púrpura. O pilar que era o pedestal subia desde o centro de tudo o que existia em todo e qualquer mundo, rasgando cada universo pelo qual passava, tocando cada canto da existência simultaneamente, existindo para todos e para ninguém, em todo lugar e em lugar nenhum. Seria possível até mesmo acreditar que todo o resto girava em torno daquele eixo.

E no topo daquele colosso granítico, ocupando completamente a área de seu ápice, um livro. Um livro velho, gasto. Tão gasto que já não tinha cor. Sua capa ainda mostrava leves sinais do que um dia fora um excelente trabalho de um artesão apaixonado. Alguns altos-relevos e restos de palavras agora irreconhecíveis num idioma que ninguém chegou a aprender. As páginas amarelecidas, ressecadas e quebradiças que surgiam entre as grossas capas estavam carcomidas pelos vermes do tempo, vorazes e impiedosos mesmo frente aos maiores encantos do cosmos.
A criatura aproximou-se do pedestal e pousou suas esguias mãos nas bordas do pilar, com o livro entre elas. E ela contemplou aquele volume com o olhar de um cientista observando o maior experimento de sua vida. Contemplou-o com o olhar do eterno amante que se despede, em seu último suspiro de alívio final, do objeto de sua paixão. Olhou-o como um criador contempla todas as falhas mais íntimas e os mais recônditos meandros da alma de sua criação. E também como o senhor e mestre, que possui e controla , que mantém em suas ditosas mãos a vida e a morte de tudo o que lhe pertence. Pois ele era O Oráculo, senhor daquele reino, e este era seu tomo, onde guardava tudo o que sabia e onde pesquisava para descobrir e aprender mais. Eram seus o passado e o presente. E também era sua a chave para a libertação de todas as mentes e espíritos.

Num movimento firme e decidido, que carregava em si toda a delicadeza das mais belas flores e dos mais apaixonados afagos, o Oráculo abriu seu livro. Uma poderosa luz jorrou daquelas velhas entranhas ao serem desveladas. As pálidas mãos do senhor acariciavam as páginas do servo ao folheá-las, e a cada página folheada, aquilo que antes era a infindável escuridão vazia do nada mais completo que jamais existiu preenchia-se de vida. Ali se descortinavam paixões, guerras, ilusões, vitórias, descobertas, derrotas, alianças e traições. Cada estória, cada acontecimento, cada pensamento de cada mente que existe ou já existiu. Pululavam ao redor do esguio homem, senhor do livro e parte do mesmo, todos as incontáveis estórias contidas dentro daquele eterno volume. Cada uma lida à exaustão, milhares de milhares de vezes desde muito antes da aurora do tempo. Tudo que foi e tudo o que não foi estava ali presente, contidos, todos, numa virada de páginas.

As ágeis mãos, tão habituadas àquelas páginas, encontram onde queriam chegar. Devassado, o livro jorra sua luz sobre o Oráculo que o contempla com os olhos da criança descobrindo os segredos do mundo. Cada vez que abre o livro, é sempre diferente, apesar de exatamente igual. Já lera aquelas estórias nunca lidas incontáveis milhares de vezes, e elas nunca ficariam nem um segundo mais velhas. A sombra de um sorriso toca os eternos lábios do Oráculo, enquanto ele se curva sobre o livro e mergulha em sua luz para ler novamente mais uma estória totalmente nova.

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