Degrau a degrau eles avançavam.
Subiam passo a passo. Desde que o portão fechara à suas costas aquela escadaria
os desafiara. Começaram subindo pelo fosso oco que era o salão de entrada da
torre. Nenhuma decoração, Apenas a pedra branca e os arabescos prateados.
O guerreiro mal podia ver
diferença entre ali e o exterior. A escada, do mesmo material das paredes e com
os mesmos detalhes em relevo, seguia subindo em espiral em torno do que parecia
o pilar central da torre. À distancia nem sequer conseguia diferenciar os
degraus da pedra que constituía o pilar e as paredes circundantes. Podia jurar
que os degraus surgiam ao se aproximar deles e desapareciam logo após sua
passagem. O branco e o prateado que os rodeava parecia infinito tanto para cima
quanto para baixo. Rapidamente perdeu a noção do quanto tinham avançado.
Subiam e subiam. Caminharam por
uma vida inteira antes que ele percebesse a nevoa. Não estava cansado.
Caminhara, correra e lutara sua vida inteira sobre a terra, sobre a lama, sobre
os corpos de seus inimigos. Lutara por mais tempo e com mais inimigos do que
qualquer exercito. Não seria derrotado por uma simples escada. Um passo depois
do outro, cada degrau um novo inimigo derrotado. Ele continuou subindo.
Mas a nevoa começou a adensar,
borrando-lhe a vista, dificultando seus passos. Com uma mão encostada na parede
do gigantesco pilar central, seguia a silhueta de seu anfitrião, borrada e
difusa em meio á bruma. A nevoa começou a dificultar-lhe a respiração e a
deixar a pedra branca úmida e escorregadia. Já não via mais o branco do pilar
ou dos degraus. Tudo era cinza nebuloso. Nem mesmo via mais a silhueta do que
ia a sua frente. Mas o caminho era um só: Em frente e acima. Sabia para onde
ir. Não pararia por nada. Nunca tinham feito aquele homem desviar de seu
caminho nem tinham impedido seu avanço. Recuar era a morte e, pior, a desonra,
a ignomínia, o esquecimento. Ele continuaria, avançaria sempre.
Começou a notar sombras tênues,
distantes, movendo-se em meio à densa neblina que o redoava. Cinzas mais
profundos destacados contra o leve cinza do resto do ambiente. Moviam-se
rápido, mais distantes do que arriscava distanciar-se do pilar. Não tinha noção
de onde terminariam os degraus. Não podia mais ver o abismo que sabia
encontrar-se ao fim daqueles degraus. Nenhum corrimão, sacada ou parede o
impediria de cair. Lembrava-se das palavras daquele que lhe abrira os portões,
os avisos que dera e as ameaças que fizera.
-
O que procuras encontra-se no fim desta escadaria, no mais alto cômodo desta
torre.- Dissera-lhe o anfitrião. Sua voz era solene, poderosa, porem amável.
Dava seu aviso como se realmente se importasse - Mas ouve bem, mortal. Ouve com
atenção. Este é um caminho sem volta. Uma vez que dê o primeiro passo nesta
jornada, jamais poderá voltar.- A voz parecia ecoar por todo o mundo antes de
sair de dentro do pesado capuz que lhe escondia o rosto.
-Nunca
recuei frente a nenhum desafio, nunca fui barrado por inimigo algum. Nada,
deus, demônio ou espírito, jamais impediu meu avanço. Não vivi tanto tempo para
ser derrotado agora.
-Muito
bem. Se assim desejas. Entregue sua espada. Eu a devolverei quando chegar ao
seu destino. E se lá não chegar, ela não lhe será útil.
-Sabe
que sou tão mortífero com ou sem a espada, não é? Esta espada é apenas uma
ferramenta. Minha arte descansa em meus braços, em meu corpo e em meu espírito.
-É
bom que tenha esta compreensão. Tornará tua viagem menos difícil. Agora vem.
Prossigamos.
E os dois começaram a subida
tanto tempo antes, mais de uma vida atrás.
Um passo. Mais outro. A cada
degrau que subia a neblina se adensava, escurecia. Também aumentavam as sombras
que se moviam, ocultas. Às vezes pareciam próximas o suficiente para que
pudesse tocá-las, outras vezes estavam tão distantes que mal podia
distingui-las do resto da névoa. E o número delas crescia, assim como a
escuridão. Em pouco tempo já conseguia ver que aquelas sobras, agora tão numerosas
e se movendo tão rápidas. E tinham olhos. Pequenos pontos brilhantes, um brilho
intenso e longínquo, de várias cores diferentes.
Assim como seu guia a muito
sumira na bruma, a própria bruma desaparecera frente ao negrume que se seguiu.
Tantas eram as sombras à sua volta que agora tudo era negro. Uma escuridão
profunda e inexorável, interrompida apenas pelo voo errático daqueles distantes
pontos brilhantes, multicoloridos. Podia sentir a parede do pilar contra seus
dedos e os degraus, sólidos, sob seus pés. Mas estavam a muito perdidos,
ocultos, invisíveis.
Caminhava cego pela escuridão,
tenso, atento. Cada sentido seu em alerta total. Seus instintos combativos, sua
experiência em incontáveis campos de batalha, lhe dizia o tempo todo que
poderia ser atacado a qualquer momento. Mas não ouvia mais nada, não enxergava
nada. Nenhum cheiro, nem mesmo aroma característico de névoa, de vapor. Nada
sentia a não ser o frio toque da pedra contra seus dedos e seus pés. Só via
aquelas distantes estrelas coloridas voando à distancia.
Foi quando percebeu uma leve iluminação
à frente. Era baça, mas trazia algum conforto frente ao vazio que o rodeava.
Soube, então que estava perto de seu destino. Aquela viagem logo teria fim. Seu
objetivo estava quase à sua frente. Acelerou o passo. A luz foi aumentando,
trazendo com ela um calor reconfortante. Seu coração acelerou. A proximidade
com o fim daquele caminho insólito dava-o forças. O clarão cresceu cada vez
mais, seus olhos doíam com a luz, e o calor agora era abrasador. Podia ouvir o
crepitar de um grande fogo. As estrelas dançantes ao longe já não dançavam. Observavam,
estáticas, seu avanço em direção à enorme fogueira que se insinuava à sua
frente. Já não caminhava. Corria em direção à luz. Sua pele ardia, os olhos,
doloridos, mantinham-se abertos apenas pela poderosa força de vontade de seu
dono. O cheiro de fogo sem fumaça, de tempestade e algo mais. Algo que demorou
à identificar.
Era o pesado cheiro de tempo. O
cheiro de tempo demais. O aroma que só os muito velhos conseguiam apenas
imaginar, O cheiro de como seria depois que envelhecessem mais algumas vidas
inteiras. E tudo aquilo vinha em sua direção cada vez mais rápido, cada vez
mais intenso. Uma velha tempestade de fogo que crescia a cada passo. Até
explodir á sua frente ocupando todos os seus sentidos.
Quando conseguiu abrir os olhos
novamente, a névoa tinha desaparecido. As estrelas, antes dançantes, estavam
próximas e não mais voavam, se arrastavam pelo firmamento. Astros giravam e se
moviam lentamente no espaço infinito ao seu redor. O pilar e a escada
continuavam em direção ao infinito negro, mas agora via planetas, estrelas e
galáxias em seu eterno balé cósmico. O universo girava em torno do caminho que
seguia. Olhou para baixo. A escadaria surgia de uma esfera de fogo azul, com
tentáculos de labaredas arroxeadas agitando-se em volta do caminho que seguira
até ali. Uma enorme estrela azul purpúrea. Via dançarinos naquelas labaredas
gigantes. Seus cabelos deixavam o rastro do fogo para trás. Dançarinos e
dragões. As caudas dos dragões incendiavam o vazio. Nas enormes erupções que
escapavam da estrela os dançarinos, e seus cabelos em chamas, e os dragões, com
suas caudas inflamadas, iluminavam tudo a seu redor e desintegravam tudo o que
tocavam. Alguns planetas próximos demais desapareceram enquanto o guerreiro
observava a bela revolução das chamas estelares.
Por um segundo ele não conseguiu
respirar. A grandiosidade de tudo que via o arrebatava. Enfrentara os mais
altos deuses e os mais terríveis demônios e seus exércitos, mas nada fora tão
grandioso, incrível e majestoso quanto o que via ali. Toda a criação dançando e
girando à sua frente.
Teria passado mais alguns séculos
contemplando tudo aquilo, mas uma presença a seu lado o fez acordar de seu
devaneio. Ali estava o grande manto negro, de capuz pesado e cheio de detalhes
dourados. Seu guia. Estava simplesmente parado a seu lado, como se esperasse
algo. Ele nada disse, nem sequer se moveu. Mas o guerreiro entendeu. Tinha
esquecido seu objetivo. Por um segundo tinha deixado para trás sua busca,
embevecido nas belezas do cosmo. Deveria ficar irritado, deveria se repreender.
E o teria feito se fosse mais moço. Mas tudo que pode fazer foi dar um leve
sorriso meio arrependido:
-Perdoe
a mente enfraquecida de um velho. Os anos nos fazem divagar cada vez com mais
frequência e por mais tempo. Mas já estou pronto para prosseguir.
Com um rápido aceno de cabeça o
guia deu-lhe as costas e pôs-se a caminho. Eles voltaram a subir.
Galáxias morreram e galáxias
nasceram. Estrelas engoliram a si próprias, ruminaram-se por várias eras e
regurgitaram novos universos. A vida surgiu e desapareceu várias vezes em
muitos mundos. Grandes naus singraram os vazios do cosmos e várias raças
guerrearam entre os corpos celestes em eterna revolução. E eles continuavam
subindo. Subindo eternamente.
Subiram tanto que todos os corpos
celestes se distanciaram. Sumiram na distancia muito abaixo deles. E só restou
o pilar, a escada, os dois peregrinos e a escuridão do vácuo.
Então uma poderosa luz rasgou o
negrume do universo e sumiu na distancia acima deles. Então veio outra.
Igualmente branca e resplandecente, coruscando numa velocidade imensa na
escuridão. E então mais outra dessas pequenas estrelas cadentes. E outra. E
outras. Várias delas. Vindas do nada abaixo e desaparecendo muito, muito acima.
Então ele notou. Havia um pequeno ponto luminoso lá no alto. Um ponto onde
aquelas estrelas cadentes pareciam convergir.
Eles continuaram subindo. E o
ponto luminoso aumentou. Outra estrela. Mas essa era maior, mais densa, mais
quente que aquela da qual tinha emergido tanto tempo antes. E era amarela e
vermelha, como as chamas de uma fogueira. As estrelas cadentes se chocavam com
as enormes erupções que fugiam da estrela vermelha e explodiam numa chuva de
luz prateada e laranja. Aqui os dançarinos eram menos graciosos. Seus
movimentos mais duros e pesados, mas ainda assim belos. Golpeavam cada estrela
candente com bastões de chamas, despedaçando-as. Os dragões, antes majestosos,
aqui eram pura fúria. Abocanhavam cada estrela e as destruíam entre seus
dentes. Ali se travava uma verdadeira guerra.
Então veio uma estrela diferente.
Esta tinha o tom daquela primeira estrela que haviam visto, azul purpúrea. Esta
vinha mais rápida e era maior que as outras. Dragões e dançarinos investiram
contra ela, mas foram destruídos em sua passagem. A estrela cadente continuou
sua jornada até chocar-se com a grande estrela. Checaram-se. E a estrela
cadente adentrou a grande vermelha. E suas cores se misturaram. Os dançarinos e
os dragões começaram a morrer e a grande estrela, agora vermelho sanguíneo,
começou a pulsar.
Enquanto continuava a subir acima
de toda aquela revolução, o velho guerreiro viu a estrela de sangue tornar-se
duas. Depois tornar-se quatro. E então muitas. E antes que ela sumisse na
distancia abaixo deles, jurou poder ver um pequenino rosto em meio às chamas de
incontáveis estrelas.
Foi então que um céu formou-se
acima deles. Parecia granito, com seus pequenos cristais brilhantes de
diferentes cores. Caminharam bastante em direção ao céu granito acima deles.
Séculos de caminhada, sempre ascendente. Incontáveis degraus. Então um
estrondo, um trovão gigantesco. Seguido por outro ainda maior, algo quebrando-se
em várias partes. Uma rachadura no céu, distante deles. E alguém caindo através
da rachadura. Uma mulher. Nua, ela caia de costas, as mãos e os pés soltos,
flácidos, estendidos ao sabor da queda. E ela chorava. Chorava silenciosamente.
Chorava lagrimas de sangue. E o mesmo sangue manchava suas mãos e seu peito.
Ela olhou para eles. Olhou para ele. Mas seu olhar nada tinha de pedir ajuda.
Apenas resignação. A triste aceitação dos que decidem pagar o preço final. E
continuou caindo.
-Vamos
deixa-la cair? Não podemos ajudá-la?- Perguntou o guerreiro a seu guia.
-Não.
O caminho dela não é este. Cada um deve seguir seu próprio caminho, seja este
doloroso como for. Nossos caminhos são nossos e apenas nossos. E o dela está
apenas começando.
-E
se decidisse tentar ajudá-la?- Questionou o velho combatente, com o tom ríspido
dos que passaram a vida desafiando o destino e indo contra as normas.
-Cairia.-Foi
a resposta que lhe veio de dentro do manto inescrutável.
-E
então?
-Como
foste avisado ao começar a trilhar este caminho, jamais chegaria onde deseja e
esta estrada estaria perdida para sempre.
Um último olhar em direção a
pobre mulher que despencava e ele pôs-se à caminho novamente. Continuaram
subindo. Cada vez mais próximos do céu duro e rachado acima. E eles subiam
ainda mais. E várias eras passaram enquanto subiam. E aquilo que era granito já
não era mais. Enormes rostos de varias cores formavam aquele firmamento tão
concreto. Cada pequeno cristal do granito era uma face perfeitamente esculpida,
cada expressão diferente. Dor, prazer, tristeza, êxtase, agonia, felicidade,
desespero, alegria. E uma delas, distante, estava arruinada, destruída. Por
detrás dela outros rostos eram visíveis. Menores, mais numerosos e igualmente
perfeitos. E no escuro de seus olhos, rostos ainda menores. E outros rostos
ainda menores nos olhos destes.
A escada seguia até tocar um
destes rostos. A boca deste estava aberta. E nesta bocarra, três portas fitavam
o guerreiro.
Uma delas estava escancarada. E
lá ele via imagens de sua vida. Via suas batalhas, suas vitórias, suas
alegrias, suas glórias. E todo o inverso delas. Via também seu caminho até
aquele lugar. Viu a pobre garota caindo.
A segunda estava levemente
entreaberta. Tão pequena era a fresta da abertura que só podia ver a luz que
vinha de trás da porta e imaginar o que havia ali.
A terceira estava fechada.
-Uma
destas portas está trancada.-Disse o guia, com sua voz profunda e calma.- Nem
eu nem você temos a chave nem temos permissão para atravessá-la. É teu dever
escolher qual delas cruzará. Apenas uma te levará ao destino que desejas.
-É
este o final da jornada?- perguntou o guerreiro.
-Não.-
respondeu secamente a voz dentro do manto.- Este é apenas o final desta escada.
E o começo do que quer que esteja por vir. Mas lembre-se: uma vez feita a
escolha, não poderás voltar atrás.
O guerreiro fitou as portas.
Muitos deuses surgiram e desapareceram enquanto ele divagava. Seria ele capaz
de derrubar a porta trancada? E a porta já aberta? Teria ele algum interesse
nela? Havia também uma porta entreaberta. O que ela guardaria? E se tentasse a
porta trancada e falhasse? Teria de voltar por onde veio? Voltar ao mundo que
deixara já nem sabia quanto tempo atrás?
Respirando fundo, o guerreiro
juntou todo seu espírito, sua coragem e sua força de vontade. Tinha de tomar
ali uma decisão que poderia mudar completamente o seu destino. Uma decisão que
poderia destruí-lo. Soltou o ar lentamente, relaxando os músculos como que se
preparando para um combate. E, com um movimento súbito, fluido e firme,
atravessou a porta entreaberta.
Deu por si num salão de banquete.
A mesa estava posta. Quatro cadeiras em torno da grande e suntuosa mesa. As
paredes eram da mesma pedra branca com detalhes prateados. Um gigantesco
candelabro ocupava todo o teto do grande aposento, varias dezenas de metros de
diâmetro. Numa das grandes cadeiras o redor da mesa, um garoto de seus
dezesseis anos, pele bronzeada, olhos azuis luminosos e completamente nu,
sorria sarcasticamente para ele.
Atordoado, o guerreiro voltou-se
para a porta. Lá estava ele. Aquele que procurara por tanto tempo. O Oráculo.
De formas esguias e andróginas, pele muito branca, cabelos negros, vestes
escuras, brincos, pulseiras e colares resplandecentes como estrelas. Segurava
um manto pesado e, com um sorriso, fechou a porta e disse:
-Bem
vindo ao meu salão. Sinta-se confortável. O jantar será servido em breve. Nem
todos os convidados chegaram.
Dude, manera nas dorgas, mano! auhauhauhaua
ResponderExcluirBrincadeiras à parte, achei essa parte cheia de metáforas e alegorias (representadas) interessantes. Mas tens de tomar cuidado caso esse texto seja uma continuação dos anteriores. O leitor não se interessará por mais de dois capítulos de "viagem". É interessante ter algo de concreto também, com o que o leitor possa se identificar. Mas isso é apenas uma visão. Você é o mestre de seu mundo.