sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Amor Próprio


*Cuidado. Temática forte!*

A porta do quarto abriu-se de repente, dando-lhe passagem e sendo fechada violentamente logo em seguida. Chorava. As roupas e o cabelo em desalinho, a maquiagem borrada, o lábio ferido e o olho roxo, tudo, em harmonia com a decoração daquele lugar. Suas roupas espalhadas pelo chão, a cama desarrumada, pelúcias e badulaques espalhados em todos os lados, pôsteres nas paredes e livros empilhados em cada canto. Suas lágrimas rolavam livres e soltas por seu belo rosto, agora desfigurado pela amargura e a tristeza, enquanto ela se sentava na cama. O corpo arqueado subia descia a cada soluçar. O rosto mal escondido entre as mãos mostrava tudo que o choro impedia-a de dizer. O rancor, o pesar, a dor, a humilhação, o desespero, tudo que uma alma podia carregar sozinha. E mais um pouco.

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Ela o amara. Ela deu a ele tudo o que tinha, tudo o que era. Entregara-se completamente. Mas nunca era o bastante. Ele sempre queria mais, exigia mais. Ela acabou se distanciando dos outros. Já não tinha tempo para amigos nem família. Nem mesmo o trabalho ou os estudos. Ele ocupava todo o seu tempo, todo o seu  espaço. Ele era todo o seu mundo.

E em troca de disso, em troca de seu corpo, de sua mente e de coração, ela a usava como bem entendia. Usava-a e abusava dela de todas as maneiras que conhecia. E de tantas outras maneiras que pesquisava especialmente para ela. Ele a instigava, provocava e humilhava. Não havia limites para seu domínio sobre ela. E ela agradecia. Ela delirava. Maravilhava-se com tudo aquilo. A cada novidade que ele lhe trazia ela descobria novos limites para seu corpo e sua mente. Sempre que achava que tinha experimentado de tudo, que nada mais restava, que aquela jornada maravilhosa e terrível finalmente terminara, ele surgia com algo novo. Algo muito pior todo o resto. Mais degradante, mais doloroso, mais depravado, mais imoral e muito mais ilegal. E ela novamente sucumbia àquela vontade tão superior à sua. Nada nela era capaz de resistir a ele. Ele era a sua religião, o seu vício, seu tudo.

E então, tão de repente quanto tinha entrado em sua vida, ele decidira partir. Tinha perdido o interesse nela. Disse que tinha encontrado alguém melhor. Que ela já não lhe era suficiente. Estava gasta, usada, ultrapassada demais para os desejos dele. O único homem da vida dela decidira que ela deixara de ser boa o bastante para ele. Ela, que lhe dedicara tudo que tinha e era à ele.

Não pudera deixar aquilo acontecer sem lutar. Implorara à ele que a deixasse segui-lo. Que faria qualquer coisa que lhe pedisse. Ele retrucou que não era mais o bastante. Que ela já não era mais capaz de dar-lhe o que ele tanto desejava. Ela estava quebrada, e ele não se interessava por brinquedos imperfeitos.
Ele a deixou desolada, perdida, desesperada, enrolada sobre si mesma soluçando no canto da parede, e foi embora, rindo alto. Todo o mundo que ela um dia conhecera, saía de sua vida com uma gargalhada e batendo a porta com estrondo.

Ali, enrolada e encolhida no canto mais escuro da casa, ela ficou enquanto algo dentro de si era rasgado, quebrado, despedaçado. Foi ali que seus pais à encontraram tarde da noite, ao voltarem de mais um dia cinzento, mundano e banal de trabalho. Ao acenderem as luzes, encontraram apenas cacos e sombras do que um dia fora sua filha. Largada no chão, ela tentava ainda, em vão, juntar seus pequenos cacos e juntá-los com as pequenas migalhas que ele deixara dentro dela. Sim, porque parte dele ainda estava dentro dela. E estaria ainda com ela por bastante tempo. Consumia-a, devorava-a, alimentava-se dela e de tudo que restava dela. E crescia.

Seus pais tentaram ajudá-la a se levantar, mas ela não tinha mais forças. Deixava-se carregar, meio morta e completamente derrotada. Levaram-na para a grande cama do quarto de casal. O pai, tão acostumado às moléstias do corpo, tentou examiná-la, tentou descobrir que mal a consumia e com quais remédios tratá-la. A mãe, guerreira e defensora da justiça, interrogava-a e jurava vingança aos que à feriram. Foi então que ela compreendera. Axava que tinha sacrificado tudo o que tinha por ele, que lhe dera tudo o que podia. Mas não era verdade. Ainda havia sacrifícios à fazer. E sua mãe carregava à cintura a ferramenta que ela precisava.

Eles resistiram. Lutaram. Tentaram fugir. Gritaram, imploraram por suas vidas. Mas ela sabia que era assim que devia ser. Precisava dele de volta. Precisava ser dele de novo. E nada mais lhe restara para dar, nenhum sacrifício que já não tivesse feito. Apenas aquele último e derradeiro. Enquanto caminhava, suja e ferida, para a cozinha sentiu-se mais alegre e aliviada. Tivera forças suficiente para fazer o que tinha que fazer. Compreendera o que seu senhor queria e agora estava pronta à entregar-lhe. Apanhou a melhor faca da mãe e voltou para junto dos pais. E começou o lento processo de separar o belo rubi vital da sujeira do barro primordial. Duas lindas joias carmesins seriam suficientes para mostrar à ele o quanto desejava voltar a lhe pertencer. Aquele presente não poderia ser negado. Ele tinha de aceitá-la de volta.

Não esperou o raiar do dia. Pôs as oferendas em sua velha mochila, junto com aquelas ferramentas agora tão queridas, e saiu de casa com sorriso no rosto e o passo rápido e largo. Queria encontrá-lo o mais rápido possível e mostrar-lhe o quanto era merecedora, o quanto ela era capaz e o quanto o amava. Percorreu a cidade em busca dele por longas horas. Não sabia onde ele morava. Ele nunca a tinha levado à nenhum lugar que pudesse chamar de lar. Mas a tinha apresentado à alguns amigos. Procurou por esses amigos. Amigos dele. E tudo que era dele, ele dividira com os seus.

Cada um tinha uma pequena parte da informação que ela tanto queria. Alguns cobraram pela informação, às vezes bastante caro, mas ela estava disposta a pagar qualquer preço. E sabia o que eles queriam em troca de ajuda. Pagou à cada um com um sorriso no rosto. E alguns se ofereceram para ficar com ela. Mas não. Ela já pertencia a ele. Alguns outros foram mais intransigentes, teimosos até. Mas nada que não pudesse resolver. Afinal, ela trouxera as ferramentas certas.

Depois de várias horas ela chegou àquele hotel enorme e luxuoso. O mesmo de seu primeiro encontro com ele. Quando ele começou a ensiná-la e ela apaixonou-se pelas lições que ele tinha a dar. Ainda suja e desarrumada, foi barrada logo na entrada. Mas estava numa missão sagrada. Uma cruzada só sua. Não podia desistir agora. Empunhado o trovão e o relâmpago que trazia na velha e desgastada bolsa, convenceu o porteiro a deixá-la entrar. Correu através do saguão e escada acima sem dar tempo à qualquer segurança de interrogá-la. Sabia para onde deveria ir. Seu coração lhe apontava o caminho. Voou escada acima com as asas da urgência. Cinco, sete, onze, treze andares. Não sabia se o coração acelerado era devido ao cansaço ou a expectativa de finalmente reencontrá-lo. Caminhou com passos rápidos pelo corredor até a porta do quarto. A plaquinha acima da porta indicava o número mil trezentos e seis. Sabia que era aquele. O mesmo de antes. Tinha de ser aquele. Que outro quarto poderia ser?

A voz dele vindo lá de dentro, distante e abafada, confirmou suas suspeitas. Foi invadida por pura alegria. Sua missão estava quase acabada. Bastava que abrisse aquela porta, se jogasse no chão e implorasse pelo perdão dele. Com aquelas oferendas ele jamais a negaria. Nunca. Jamais. Seriam os dois, juntos novamente, para sempre.

Deixou-se ficar ali um segundo saboreando aquele momento, embevecida com seus próprios devaneios e hipnotizada pela distante voz dele que atravessava aquelas paredes. Um minuto se passou. Depois outro. E mais dois depois deste. E ela perdeu a noção tempo ali, bêbada de expectativa. Seus olhos marejados, suas pernas tremulas, seu íntimo em chamas, só de pensar em revê-lo, tê-lo de novo. O som distante de vozes que a procuravam a trouxe de volta. Bateu na porta e prendeu a respiração quando passos se aproximaram para atender.


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Sentada na cama, ela chorava. Sentia ainda o os cheiros que deixara, muitas horas antes, no quarto dos pais. O barro divino desmanchado e devassado, privado de sua fonte de luz. Chorava e revivia aqueles últimos momentos com ele. Relembrava cada detalhe daqueles momentos. Os momentos entes de perdê-lo para sempre.

Ele a humilhara, escarnecera, rira alto. Lembrava-se da expressão de divertimento quando lhe mostrara suas oferendas. Ele as chutou, estapeou-a, chutou-a quanto caiu e cuspiu nela. Tudo isso sem interromper aquele terrível riso. Alto, agudo, ferino, descontrolado e ininterrupto. Louco. Só então a outra mulher, que estivera na cama, juntara-se a ele para humilhá-la também. A mulher que lhe tomara o lugar. Aquilo tinha sido demais. Alcançara o trovão guardado na mochila e fulminara a mulher. E novamente implorou a ele que a aceitasse de volta. E novamente ele a negou com aquela risada histérica. E então, gritando, ela o matou. O matou. E o matou de novo. E o matou mais uma vez. Fez chover sobre ele raios e trovões.

Não se lembrava de como chegara de volta em casa. Mas lá estava, sentada em sua cama, em seu quarto. Os poucos cacos que restavam de sua vida a rodeavam e só serviam para lembrá-la de tudo que perdera. Perdera ele. Perdera tudo.

Não fora boa o bastante. Não se esforçara o bastante. Não sacrificara o suficiente. Não tivera forças para mate-lo consigo. E agora nada mais tinha sentido. Nada mais tinha razão. Nada mais havia naquele mundo para ela. Só lhes restava o esquecimento. Sua mão tateou novamente a surrada mochila, tão velha e tão suja, e deixou-se cair na cama. O sol nascia enquanto ela caia. E em sua queda ela chamou pelo trovão uma ultima vez. E ele a atendeu. E quando ela caiu sobre a cama, a cama estilhaçou em um milhão de cacos coloridos. O mundo se estilhaçou. Ela continuou caindo. E caindo. E caindo. E caiu através do mundo. Caiu além do mundo. E continuou caindo. E caindo. E caindo.

Um comentário:

  1. Adorei os jogos de ficção e realidade, numa narrativa que parecia se desenrolar ora de um narrador e hora da mente deturpada dela. Gostei.

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