*Cuidado. Temática forte!*
A porta do quarto abriu-se de
repente, dando-lhe passagem e sendo fechada violentamente logo em seguida.
Chorava. As roupas e o cabelo em desalinho, a maquiagem borrada, o lábio ferido
e o olho roxo, tudo, em harmonia com a decoração daquele lugar. Suas roupas
espalhadas pelo chão, a cama desarrumada, pelúcias e badulaques espalhados em
todos os lados, pôsteres nas paredes e livros empilhados em cada canto. Suas
lágrimas rolavam livres e soltas por seu belo rosto, agora desfigurado pela
amargura e a tristeza, enquanto ela se sentava na cama. O corpo arqueado subia
descia a cada soluçar. O rosto mal escondido entre as mãos mostrava tudo que o
choro impedia-a de dizer. O rancor, o pesar, a dor, a humilhação, o desespero,
tudo que uma alma podia carregar sozinha. E mais um pouco.
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Ela o amara. Ela deu a ele tudo o
que tinha, tudo o que era. Entregara-se completamente. Mas nunca era o bastante.
Ele sempre queria mais, exigia mais. Ela acabou se distanciando dos outros. Já
não tinha tempo para amigos nem família. Nem mesmo o trabalho ou os estudos.
Ele ocupava todo o seu tempo, todo o seu
espaço. Ele era todo o seu mundo.
E em troca de disso, em troca de
seu corpo, de sua mente e de coração, ela a usava como bem entendia. Usava-a e
abusava dela de todas as maneiras que conhecia. E de tantas outras maneiras que
pesquisava especialmente para ela. Ele a instigava, provocava e humilhava. Não havia
limites para seu domínio sobre ela. E ela agradecia. Ela delirava.
Maravilhava-se com tudo aquilo. A cada novidade que ele lhe trazia ela
descobria novos limites para seu corpo e sua mente. Sempre que achava que tinha
experimentado de tudo, que nada mais restava, que aquela jornada maravilhosa e
terrível finalmente terminara, ele surgia com algo novo. Algo muito pior todo o
resto. Mais degradante, mais doloroso, mais depravado, mais imoral e muito mais
ilegal. E ela novamente sucumbia àquela vontade tão superior à sua. Nada nela
era capaz de resistir a ele. Ele era a sua religião, o seu vício, seu tudo.
E então, tão de repente quanto
tinha entrado em sua vida, ele decidira partir. Tinha perdido o interesse nela.
Disse que tinha encontrado alguém melhor. Que ela já não lhe era suficiente.
Estava gasta, usada, ultrapassada demais para os desejos dele. O único homem da
vida dela decidira que ela deixara de ser boa o bastante para ele. Ela, que lhe
dedicara tudo que tinha e era à ele.
Não pudera deixar aquilo
acontecer sem lutar. Implorara à ele que a deixasse segui-lo. Que faria
qualquer coisa que lhe pedisse. Ele retrucou que não era mais o bastante. Que
ela já não era mais capaz de dar-lhe o que ele tanto desejava. Ela estava
quebrada, e ele não se interessava por brinquedos imperfeitos.
Ele a deixou desolada, perdida,
desesperada, enrolada sobre si mesma soluçando no canto da parede, e foi
embora, rindo alto. Todo o mundo que ela um dia conhecera, saía de sua vida com
uma gargalhada e batendo a porta com estrondo.
Ali, enrolada e encolhida no
canto mais escuro da casa, ela ficou enquanto algo dentro de si era rasgado,
quebrado, despedaçado. Foi ali que seus pais à encontraram tarde da noite, ao
voltarem de mais um dia cinzento, mundano e banal de trabalho. Ao acenderem as
luzes, encontraram apenas cacos e sombras do que um dia fora sua filha. Largada
no chão, ela tentava ainda, em vão, juntar seus pequenos cacos e juntá-los com
as pequenas migalhas que ele deixara dentro dela. Sim, porque parte dele ainda
estava dentro dela. E estaria ainda com ela por bastante tempo. Consumia-a,
devorava-a, alimentava-se dela e de tudo que restava dela. E crescia.
Seus pais tentaram ajudá-la a se
levantar, mas ela não tinha mais forças. Deixava-se carregar, meio morta e
completamente derrotada. Levaram-na para a grande cama do quarto de casal. O
pai, tão acostumado às moléstias do corpo, tentou examiná-la, tentou descobrir
que mal a consumia e com quais remédios tratá-la. A mãe, guerreira e defensora
da justiça, interrogava-a e jurava vingança aos que à feriram. Foi então que
ela compreendera. Axava que tinha sacrificado tudo o que tinha por ele, que lhe
dera tudo o que podia. Mas não era verdade. Ainda havia sacrifícios à fazer. E
sua mãe carregava à cintura a ferramenta que ela precisava.
Eles resistiram. Lutaram.
Tentaram fugir. Gritaram, imploraram por suas vidas. Mas ela sabia que era
assim que devia ser. Precisava dele de volta. Precisava ser dele de novo. E
nada mais lhe restara para dar, nenhum sacrifício que já não tivesse feito.
Apenas aquele último e derradeiro. Enquanto caminhava, suja e ferida, para a
cozinha sentiu-se mais alegre e aliviada. Tivera forças suficiente para fazer o
que tinha que fazer. Compreendera o que seu senhor queria e agora estava pronta
à entregar-lhe. Apanhou a melhor faca da mãe e voltou para junto dos pais. E
começou o lento processo de separar o belo rubi vital da sujeira do barro
primordial. Duas lindas joias carmesins seriam suficientes para mostrar à ele o
quanto desejava voltar a lhe pertencer. Aquele presente não poderia ser negado.
Ele tinha de aceitá-la de volta.
Não esperou o raiar do dia. Pôs
as oferendas em sua velha mochila, junto com aquelas ferramentas agora tão
queridas, e saiu de casa com sorriso no rosto e o passo rápido e largo. Queria
encontrá-lo o mais rápido possível e mostrar-lhe o quanto era merecedora, o
quanto ela era capaz e o quanto o amava. Percorreu a cidade em busca dele por
longas horas. Não sabia onde ele morava. Ele nunca a tinha levado à nenhum
lugar que pudesse chamar de lar. Mas a tinha apresentado à alguns amigos.
Procurou por esses amigos. Amigos dele. E tudo que era dele, ele dividira com
os seus.
Cada um tinha uma pequena parte
da informação que ela tanto queria. Alguns cobraram pela informação, às vezes
bastante caro, mas ela estava disposta a pagar qualquer preço. E sabia o que
eles queriam em troca de ajuda. Pagou à cada um com um sorriso no rosto. E
alguns se ofereceram para ficar com ela. Mas não. Ela já pertencia a ele.
Alguns outros foram mais intransigentes, teimosos até. Mas nada que não pudesse
resolver. Afinal, ela trouxera as ferramentas certas.
Depois de várias horas ela chegou
àquele hotel enorme e luxuoso. O mesmo de seu primeiro encontro com ele. Quando
ele começou a ensiná-la e ela apaixonou-se pelas lições que ele tinha a dar.
Ainda suja e desarrumada, foi barrada logo na entrada. Mas estava numa missão
sagrada. Uma cruzada só sua. Não podia desistir agora. Empunhado o trovão e o
relâmpago que trazia na velha e desgastada bolsa, convenceu o porteiro a
deixá-la entrar. Correu através do saguão e escada acima sem dar tempo à
qualquer segurança de interrogá-la. Sabia para onde deveria ir. Seu coração lhe
apontava o caminho. Voou escada acima com as asas da urgência. Cinco, sete,
onze, treze andares. Não sabia se o coração acelerado era devido ao cansaço ou
a expectativa de finalmente reencontrá-lo. Caminhou com passos rápidos pelo
corredor até a porta do quarto. A plaquinha acima da porta indicava o número
mil trezentos e seis. Sabia que era aquele. O mesmo de antes. Tinha de ser
aquele. Que outro quarto poderia ser?
A voz dele vindo lá de dentro,
distante e abafada, confirmou suas suspeitas. Foi invadida por pura alegria.
Sua missão estava quase acabada. Bastava que abrisse aquela porta, se jogasse
no chão e implorasse pelo perdão dele. Com aquelas oferendas ele jamais a
negaria. Nunca. Jamais. Seriam os dois, juntos novamente, para sempre.
Deixou-se ficar ali um segundo
saboreando aquele momento, embevecida com seus próprios devaneios e hipnotizada
pela distante voz dele que atravessava aquelas paredes. Um minuto se passou.
Depois outro. E mais dois depois deste. E ela perdeu a noção tempo ali, bêbada
de expectativa. Seus olhos marejados, suas pernas tremulas, seu íntimo em
chamas, só de pensar em revê-lo, tê-lo de novo. O som distante de vozes que a
procuravam a trouxe de volta. Bateu na porta e prendeu a respiração quando
passos se aproximaram para atender.
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Sentada na cama, ela chorava.
Sentia ainda o os cheiros que deixara, muitas horas antes, no quarto dos pais.
O barro divino desmanchado e devassado, privado de sua fonte de luz. Chorava e
revivia aqueles últimos momentos com ele. Relembrava cada detalhe daqueles
momentos. Os momentos entes de perdê-lo para sempre.
Ele a humilhara, escarnecera,
rira alto. Lembrava-se da expressão de divertimento quando lhe mostrara suas
oferendas. Ele as chutou, estapeou-a, chutou-a quanto caiu e cuspiu nela. Tudo
isso sem interromper aquele terrível riso. Alto, agudo, ferino, descontrolado e
ininterrupto. Louco. Só então a outra mulher, que estivera na cama, juntara-se
a ele para humilhá-la também. A mulher que lhe tomara o lugar. Aquilo tinha
sido demais. Alcançara o trovão guardado na mochila e fulminara a mulher. E
novamente implorou a ele que a aceitasse de volta. E novamente ele a negou com
aquela risada histérica. E então, gritando, ela o matou. O matou. E o matou de
novo. E o matou mais uma vez. Fez chover sobre ele raios e trovões.
Não se lembrava de como chegara
de volta em casa. Mas lá estava, sentada em sua cama, em seu quarto. Os poucos
cacos que restavam de sua vida a rodeavam e só serviam para lembrá-la de tudo
que perdera. Perdera ele. Perdera tudo.
Não fora boa o bastante. Não se
esforçara o bastante. Não sacrificara o suficiente. Não tivera forças para
mate-lo consigo. E agora nada mais tinha sentido. Nada mais tinha razão. Nada
mais havia naquele mundo para ela. Só lhes restava o esquecimento. Sua mão
tateou novamente a surrada mochila, tão velha e tão suja, e deixou-se cair na
cama. O sol nascia enquanto ela caia. E em sua queda ela chamou pelo trovão uma
ultima vez. E ele a atendeu. E quando ela caiu sobre a cama, a cama estilhaçou
em um milhão de cacos coloridos. O mundo se estilhaçou. Ela continuou caindo. E
caindo. E caindo. E caiu através do mundo. Caiu além do mundo. E continuou
caindo. E caindo. E caindo.
Adorei os jogos de ficção e realidade, numa narrativa que parecia se desenrolar ora de um narrador e hora da mente deturpada dela. Gostei.
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